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A bibliodiversidade e os direitos culturais



 O que é bibliodiversidade?  Possivelmente a palavra tenha sido cunhada no final da década de 1990 pelo coletivo de Editores Independentes do Chile para designar a representação da pluralidade da sociedade no mercado editorial.   Para que haja bibliodiversidade, é preciso haver uma multiplicidade de propostas editoriais, de editoras e de correntes de pensamento refletidas em publicações, somadas ainda a uma ampla circulação de livros diversos, de forma a atender também variados repertórios humanos.   

 

Como existem numerosas correntes de pensamento, tipos humanos, condições e opções individuais, seria natural que as publicações literárias dessem voz a todo esse caleidoscópio humano.  Isto nos sugere o termo que intitula esta breve reflexão. Mas a bibliodiversidade encontra obstáculos, conforme veremos. 

 

Devemos inicialmente recordar que o consumo dos livros é coisa extremamente recente na história da humanidade.   Segundo Hauser, em seu História social da literatura e da arte, até o século XVIII o único tipo de publicação um pouco mais aceita na Europa era o “opúsculo de edificação religiosa”, ou seja, o livro de extrato moral religioso.  A literatura secular, ou sem cunho religioso, só começou a sua difusão no bojo da expansão da imprensa periódica, da indústria livreira e da classe burguesa urbana recém-alfabetizada.  Estamos falando da Europa de 1700 a 1800, não devemos esquecer, e mesmo lá as taxas de analfabetismo eram altíssimas! 

 

No Brasil, o letramento da população é foco muitíssimo recente de atenção pelas políticas públicas.  Segundo o IBGE, o Censo 2022 verificou notadamente no Brasil que 92,1% da população é alfabetizada, mas em 1940, por exemplo, este número era inferior a 44%.  Em 1890, apenas 17,4% da população brasileira sabia ler.   

 

Some-se a isto o fato de que até a chegada da Família Real Portuguesa no Brasil, em 1808, a metrópole proibia a Colônia de qualquer impressão de livros.   Com a chegada de D. João VI, criou-se a Imprensa Régia e, em 1821, as tipografias puderam voltar a atuar em território nacional.  O nascimento da indústria editorial brasileira foi um parto difícil!  


Hoje em dia, o segmento editorial brasileiro vem amargando quedas significativas, segundo um relatório divulgado pela Câmara Brasileira do Livro.  Nos segmentos de obras gerais, livros didáticos, livros religiosos e CTPs (livros científicos, técnicos e profissionais), verificou-se uma retração de 20% desde o ano de 2019.   Cabe frisar que o subsetor de livros religiosos foi o que menor queda de vendas registrou, aproximando-se do percentual zerado.  Isto foi carreado pelo crescimento do mercado de edições cristãs.  


Neste contexto, como pode acontecer a bibliodiversidade?  Entendemos que a indagação interessa de modo especial aos direitos culturais. Lembremo-nos que a Constituição Federal, em seu artigo 215, preceitua que o Estado deverá garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, o que nos remete ao entendimento de que o exercício dos direitos culturais passa por todas as formas de cultura nacional.  Isso em qualquer linguagem artística e em qualquer mídia que a veicule até a cada cidadão.  Assim, para que se efetivem os direitos culturais, toda forma de pensamento lícito deverá poder ser expresso em linguagem literária.   

 

Por consequência, quanto mais diverso for o mercado editorial de um país, mais efetiva é a sua bibliodiversidade e mais atendidos estão, neste sentido, os direitos culturais.  Algo que parece difícil, considerando a bombástica soma de analfabetismo, analfabetismo funcional, baixo gosto pela leitura, problemas na cadeia produtiva de livros por grandes editoras e crescente preferência por literatura de cunho cristão. 

 

Na contramão desta triste realidade, uma boa notícia:  cada vez mais a água da cultura vem encontrando meios de correr por entre as pedras.  Enquanto as grandes editoras verificam o quadro indicado acima, as pequenas iniciativas editoriais se dedicam a variados públicos específicos. 

 

São pequenas editoras compostas por gente:  pessoas feministas, pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, pessoas indígenas, pessoas praticantes de outras religiões e filosofias, pessoas e mais pessoas, distintas e dignas! 


Estas pequenas iniciativas pululam nas redes sociais, encontrando meios de marketing e distribuição, criando pontes pela internet, praticando a pré-venda de obras por plataformas de financiamento coletivo, ganhando projeção em nichos específicos e entregando não só livros impressos sob demanda como audiolivros e livros digitais.  É uma nova realidade!  


O fenômeno das pequenas editoras veio então suprir uma necessidade constitucional, pasme-se!  De modo orgânico, a bibliodiversidade agora é possível através das minis editoras que publicam e entregam diversidade, atendendo assim o artigo 215 da Constituição Federal, sem políticas públicas, sem editais de fomento e sem fundo de cultura.  Que lindo desempenho!   


Carolina de Castro Wanderley, advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, pesquisadora na área de Direito e Literatura, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: contato@carolinawanderley.com.br   


Referências:  


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.  Acessada em 10.10.2024 em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  


FATURAMENTO do setor editorial brasileiro cai 43% em termos reais desde 2006. Câmara Brasileira do Livro, 2024.  Acessada em 10.10.2024 em https://cbl.org.br/2024/07/faturamento-do-setor-editorial-brasileiro-cai-43-em-termos-reais-desde-2006/  


HAUSER, Arnold.  História social da literatura e da arte.  Trad. Walter H. Greenen.  São Paulo: Mestre Jou, 1972.           

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