A ciência agrupa os seres vivos num sistema de classificação baseado no grau de proximidade entre as diferentes espécies. Contudo, dentre todas as que compõem o Reino animal, a Homo sapiens se destaca e se diferencia das demais pela sua capacidade de refletir sobre a própria existência. Ou seja, pensar sobre si mesmo e sobre sua relação com os outros.
O riso exterioriza essa capacidade humana de reflexão, estando associado, tanto a acontecimentos trágicos - que costumam ser combustível para um “humor ácido” -, mas também a eventos felizes, sendo a arte de fazer rir a fonte de sustento de muitos artistas. Contudo, é a capacidade de rir de si mesmo e das próprias agruras que indelevelmente diferencia o animal humano dos demais.
Todos os animais (humanos e não humanos) possuem necessidades materiais a serem satisfeitas. Mas, é na forma de suprir essas necessidades que os filhos de Eva se diferenciam, pois possuem a aptidão para fabricar utensílios e ferramentas ou de desenvolver tecnologias. Além das necessidades materiais os seres humanos, mas apenas estes, possuem necessidades espirituais, pois estão imersos numa vida cultural marcada por valores, crenças, mitos, sentimentos e paixões que igualmente influenciam a forma de ver o mundo e a si próprios.
O conhecimento científico atualmente domina a forma dos seres humanos desenvolverem as tecnologias que facilitam o atendimento das suas necessidades cotidianas e influenciam na sua forma de vida. Mas a ciência é um espaço de disputas e que suas certezas, sempre provisórias, não são construídas unicamente pela força da razão. A defesa feita por Galileu Galilei (1564-1642) da teoria heliocêntrica de Copérnico exemplifica essas disputas para além da razão científica, pois aquela desafiava um conhecimento vigente desde a antiguidade e contrariava a interpretação do Antigo Testamento realizado pela Igreja que, aliás, forçou Galileu a se retratar.
A própria escolha dos objetos da pesquisa científica e das áreas do conhecimento que serão contempladas com os meios materiais e financeiros necessários para o seu desenvolvimento está envolta nessa disputa de poder. Se no passado cientistas-artistas como Leonardo Da Vinci (1452-1519) recebiam patrocínio de reis, príncipes e nobres a quem comumente dedicavam seus escritos e obras. Atualmente, é o Estado que tem o importante papel na promoção da pesquisa científica, mas também da arte que, a propósito, acabou sendo separada daquela, a contragosto do autor da Mona Lisa, defensor da pintura como ciência.
Contudo, se artistas e cientistas do passado dependiam do apreço pessoal do seu mecenas, no presente, esses incentivos devem ser providos de forma imparcial pelo Estado que precisa contemplar todas as áreas do conhecimento. É possível eleger áreas prioritárias, mas não excluir quaisquer delas do planejamento estatal de incentivos, ou mesmo, condicionar a importância de uma área a sua utilidade para a outra, como se uma delas fosse mais digna.
Se a ciência é um campo de disputas, o Estado deve ser o ponto de equilíbrio que assegura as condições materiais para o igual desenvolvimento de todas as áreas, buscando humanizá-las, para que estas estejam sempre a serviço do bem comum e do desenvolvimento humano.
Uma visão limitada do papel da Ciência e do uso da tecnologia consegue enxergar apenas parcialmente os benefícios que geram. Contudo, possuem os mais diferentes usos. O enriquecimento do urânio, por exemplo, tanto serve para produzir a limpa energia nuclear que tem emprego como combustível, quanto a bomba atômica que possui um poder avassalador de destruição.
As “ciências duras” cuidam diretamente do desenvolvimento dessas tecnologias, e gozam por isso de merecido e elevado prestígio científico, pois a elas é atribuído o mérito da criação e da invenção. Mas, mesmo antes de criada a tecnologia é necessário refletir sobre os seus usos, pois os seres humanos possuem não apenas necessidades materiais, mas também espirituais e o uso das tecnologias precisam ser compreendidos e valorados, o que é realizado pelas ciências humanas e sociais.
O próprio papel da Ciência é objeto de reflexões e questionamentos. As tecnologias desenvolvidas não possuem um valor em si, mas aquele que lhes é atribuído pelos seres humanos e que para tanto dependem de uma reflexão sobre os seus usos. Assim, é um erro excluir quaisquer das áreas do conhecimento das políticas estatais de incentivo porque todas gozam de igual dignidade e são necessárias para o atendimento das necessidades materiais e espirituais dos seres humanos.
Não se pode, portanto, negar a humanidade da Ciência, e nem silenciar a sua capacidade de rir de si mesma e das suas adversidades, justamente porque Ela é humana.
29 de abril de 2020
Allan Carlos Moreira Magalhães
Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais
Sensacional! 👏👏👏