Holograma do cantor Tupac Shakur, exibido no festival Coachella 2012, durante show do rapper Snoop Dogg Foto: Divulgação
O artigo sétimo da Lei de Direitos Autorais (LDA) dispõe que são obras intelectuais protegidas, no Brasil, as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, seja ele tangível ou intangível.
Isso quer dizer que a LDA privilegiou a necessidade de exteriorização da obra para considerar aquela criação passível de proteção pelo sistema de direito autoral – seja num livro de papel, portanto, material; seja numa postagem na rede social, isto é, imaterial.
Fazendo um trocadilho com o termo “criação do espírito”, Sérgio Branco e Pedro Paranaguá relembram, no segundo capítulo do livro “Direitos Autorais” de 2009 (que está licenciado em Creative Commons, para quem quiser baixar), um caso ocorrido na década de quarenta do século passado, envolvendo a disputa de direitos autorais entre a viúva do escritor Humberto de Campos, de um lado, e a Federação Espírita Brasileira e Chico Xavier, de outro. A contenda girou em torno da publicação de obra psicografada, sem autorização prévia e expressa da família, em nome do falecido autor.
O processo judicial envolvendo os direitos patrimoniais da obra intelectual de Humberto de Campos, apesar de curioso, não é exatamente um leading case, uma vez que a ação foi extinta sem o julgamento do mérito, servindo muito mais como um eficiente recurso didático para consolidar o conceito da “criação do espírito”.
Porém, quem tiver interesse nessa temática, vale a pena ler o livro “O Direito Autoral na obra psicografada” de Narcélio Ribeiro, publicado em 2016 pela Lumen Juris, fruto da dissertação de mestrado dele num Programa de Pós-graduação nota 6 da Capes (o maior grau conferido, atualmente, para Programa de Mestrado/Doutorado em Direito).
Tudo isso para reforçar que é um trabalho sério e de fôlego. O pesquisador faz um vasto levantamento de casos, mundo afora, envolvendo a possibilidade de entidades espirituais serem consideradas como criadoras e titulares de direitos intelectuais. Surpreende como essa temática vem sendo enfrentada por alguns tribunais estrangeiros que não fogem do mérito da ação, podendo empreender, por exemplo, perícias judiciais, a exemplo do exame grafotécnico, para saber se a obra intelectual objeto de controvérsia é de pessoas já falecidas ou não.
Pode soar estranho, mas essa discussão está reaparecendo no mercado do entretenimento digital, atualmente impulsionado pelas tecnologias da chamada web 3.0, especialmente através do uso de sistemas de inteligência artificial.
Desde a performance ao vivo de Snoop Dogg e Tupac, em 2012, no palco do Festival Coachella, o mercado do entretenimento ficou atento às oportunidades de exploração econômica de ativos digitais e tem empreendido esforços para trazer aos palcos ou plataformas digitais as obras e/ou interpretações inéditas de artistas já falecidos.
A tecnologia já avançou muito desde o dueto de Tupac que não precisa mais de uma tela hiperfina para espelhar a imagem do artista com um projetor. Agora, o holograma pode ser visto em qualquer superfície, no próprio “ar”, o que aumenta as possibilidades da produção cultural.
Isso não é algo que vamos observar num futuro longínquo, vale dizer, pois já está acontecendo. A turnê de Whitney Houston no Brasil, por exemplo, estava marcada para acontecer em 2020, mas teve que ser suspensa, em razão da pandemia de Covid-19, assim como boa parte dos espetáculos ao vivo do mundo real.
É um pouco mórbido, mas é possível mensurar o potencial disso para o mercado do entretenimento que, obviamente, vem trazendo a reboque uma enxurrada de questões jurídicas, todas elas ainda em aberto.
Dúvidas sobre direitos autorais de obras criadas por sistemas de inteligência artificial, direitos da personalidade de pessoas já falecidas, patentes sobre invenções de tecnologia com soluções de IA embarcadas serão cada vez mais comuns.
Sem contar aquelas perguntas prementes que tangenciam todas as outras, como os paradigmas epistemológicos que suportam tal análise e diretrizes éticas que devem orientar e ser implementadas no design dessas tecnologias que estão despontando na chamada web 3.0.
*Mário Pragmácio é professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional
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