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A destruição intencional do Patrimônio Cultural no Afeganistão

Caros Compatriotas,

Gostaríamos de informá-los para que evitem o contrabando e a transferência de dólares e antiguidades do Afeganistão por via aérea e terrestre. Após a sua interceptação, será confiscado imediatamente e os possuidores serão tratados legalmente. (1)



Local onde antes do Talibã havia uma estátua gigante de Buda em Bamiyan


A retomada do Afeganistão pelos combatentes do Talibã, em 15 de agosto de 2021, renovou o temor de novos ataques ao patrimônio cultural material e imaterial do país. Isto porque, há vinte anos, duas esculturas gigantes de Buda foram intencionalmente destruídas, a mais alta com 53 metros e a menor com 37 metros de altura. Ambas foram esculpidas na rocha do Vale Hazarajat entre os séculos IV e V (a. C), quando existiam vários mosteiros budistas nas cavernas naquela área.


Mesmo após a conquista do Afeganistão pelos árabes no séc. XII, as imagens foram preservadas. Os ataques iconoclastas civis e militares começaram entre 1618-1707, pelo Imperador Aurangzeb. No século XX, após dez anos da Guerra do Afeganistão (1979-1989), a rejeição à interferência ocidental (Rússia x EUA) no país renovou os valores tradicionais radicais fundamentalistas islâmicos pelo Talibã. O histórico de agressão às artes, além de saques agressivos a museus e bibliotecas, dos bombardeios do velho Cabul, foi intenso entre 1996-2001.


Ainda em 1999, o Mollah Omar ordenou a salvaguarda do patrimônio histórico nacional e incentivou o Ministro da Cultura e os responsáveis religiosos locais a explicar à população a importância deste legado comum e fonte de renda devido ao turismo local. Em fevereiro de 2001, foi ele quem iniciou o processo de inscrição dos Budas na Lista do patrimônio mundial da Unesco.


A decisão do então mestre do Afeganistão de abater as esculturas, no dia 9 de março de 2001 (2), foi uma medida de retorsão contra a decisão da Unesco de não reconhecer o regime talibã como o interlocutor oficial do país (3). Apenas três anos depois, todas as demais estátuas que estavam no Vale foram condenadas à destruição pela Suprema Corte dos Emirados Islâmicos (Talibã), cujo desejo era manter apenas representações históricas e culturais conformes com a teologia talibã.


Depois desse fato que gerou forte comoção internacional, toda a paisagem cultural e os vestígios arqueológicos do Vale do Bamiyan foram inscritos na Lista do Patrimônio Mundial e na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo, em 2003. A cooperação internacional para a retirada do Vale do Bamiyan da lista de patrimônio cultural em perigo ainda chegou a ser iniciada, entretanto, com a volta do talibã ao poder, provavelmente haverá um novo cenário.


A primeira modificação promovida após a volta do Talibã foi a substituição da República Islâmica do Afeganistão (de juri), criada em 2004, pelo Emirado Islâmico do Afeganistão (de facto), criado em 2021. Na prática o país voltou à mesma denominação à época da destruição das estátuas, o que já explica a enorme resistência da comunidade internacional em acreditar no futuro do patrimônio cultural imaterial e material afegão pelo Talibã.


Por outro lado, atualmente consta no site oficial do Ministério da Informação e da Cultura do Afeganistão (4) a orientação para que os diretores e funcionários continuem o seu trabalho como antes; que as mudanças serão para proteger os valores culturais no país; que os edifícios históricos, sítios arqueológicos, museus e arquivos nacionais devem ser tratados como bens históricos do país e como bens culturais sob a responsabilidade de todas as pessoas; e que, em particular, estão sob os cuidados do Ministério da Informação e da Cultura do Afeganistão.


Aparentemente agora existe uma maior preocupação por parte do Talibã em demonstrar uma postura conciliante com o Ocidente, mas muitos especialistas não acreditam muito na sua sinceridade quanto ao respeito aos direitos das mulheres, à liberdade de consciência e de religião.


Segundo consta no site da Unesco, o Afeganistão possui quatro instrumentos legais importantes no campo dos direitos culturais, para a proteção do patrimônio cultural tangível e bens culturais: 1) Acordo sobre Pesquisas Arqueológicas do Afeganistão, de 1950; 2) Código para a Proteção de Antiguidades no Afeganistão, de 1958; 3) Lei de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural, em 1980 (modificada em 2004); e 4) Lei de Proteção de Bens Históricos e Culturais, em 2004 (5).


O Museu Nacional do Afeganistão possui em torno de 800 mil objetos mantidos em sua coleção, sem mencionar os demais museus dispostos em outras cidades (Herat, Kandahar, Ghazni, Balkh e Mes Aynak), além de outros sítios relevantes para as culturas persa, islâmica e budista nos arredores de Cabul. Em nota oficial, a Relatora Especial das Nações Unidas para os Direitos Culturais, Karima Bennoune, declara que o patrimônio cultural imaterial (práticas culturais, poesia, música) também estão em perigo.


Proteger a vida das pessoas é uma prioridade, assim como a cultura do povo afegão, a vida dos artistas, dos trabalhadores da Cultura, dos estudantes – em particular das mulheres –, bem como dos diretores e dos técnicos dos museus, em primeiro lugar. Vale ressaltar que aqueles que arriscam suas vidas protegendo a herança cultural afegã são amplamente esquecidos pelos vários programas de concessão de vistos oferecidos pela França, Estados Unidos, Canadá e outros.


No entanto, esses profissionais da cultura trabalharam por mais de vinte anos para reconstruir uma cultura afegã rica, diversa e complexa (6). Por isso a importância dos instrumentos internacionais, como o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que lhes permite pleitear os seus direitos culturais no âmbito do direito internacional (7).


A verdade é que o interesse pelo Afeganistão por parte da comunidade internacional e dos pesquisadores ocidentais de diferentes áreas (antropologia, arqueologia, história, direitos humanos, entre outros) tende a aumentar. Primeiro porque o país continua rico em artefatos culturais pré-históricos ainda por serem estudados; segundo porque houve um grande investimento estrangeiro na arqueologia afegã durante os últimos vinte anos; e terceiro porque até o governo Talibã tem prometido dar proteção ao Museu Nacional do Afeganistão – inclusive – contra o contrabando e a lavagem de capitais, comumente associadas ao tráfico internacional de bens culturais. E isso precisa ser constantemente averiguado pelos observadores internacionais de direitos humanos (8).

Gilmara Benevides - Doutora em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduada em Direito e História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro da Association of Critical Heritage Studies (ACHS). Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Professora de Direito nas Faculdades Integradas do Ceará (UNIFIC). Email: gilmara.benevides@yahoo.com.br

Juliette Robichez - Mestre e doutora em Direito pela Universidade Paris I – Panthéon Sorbonne (França). Presidente da Comissão de Direito Internacional do Instituto dos Advogados da Bahia (CDI-IAB). Professora e pesquisadora em Direito Internacional e Direitos Humanos. Email: julietterobichez@yahoo.fr

1 - Mensagem enviada no perfil oficial do porta-voz do Emirado Islâmico do Afeganistão, Zabihullah Mujahid @Zabehulah_M33 pelo Twitter, em 24 de agosto de 2021. Tradução própria: https://twitter.com/Zabehulah_M33/status/1430249341357379590



3 - ROBICHEZ, Juliette. Proteção do patrimônio histórico-cultural da humanidade e a crise do Direito Internacional. In: MENEZES, Wagner; ANUNCIAÇÃO, Clodoaldo S. da; VIEIRA, Gustavo M. (org.). Direito Inernacional em expansão. Belo Horizonte: Arrães Editora, 2015, v. 5, p. 122, esp. p. 153 e s.


4 - https://moic.gov.af/. Acesso em: 24 ago. 2021.



6 - Ver o apelo do arqueólogo Bastien Varoutsikos no jornal Le Monde: https://www.lemonde.fr/idees/article/2021/08/24/la-france-doit-offrir-l-asile-aux-defenseurs-du-patrimoine-culturel-afghan_6092164_3232.html. Acesso em 24 ago. 2021.


7 - Os defensores dos direitos culturais afegãos trabalharam incansavelmente e correram grandes riscos desde então para reconstruir e proteger essa herança, bem como para criar uma nova cultura. As culturas afegãs são ricas, dinâmicas e sincréticas e totalmente em desacordo com a visão de mundo dura do Taleban”, afirmou. Confira em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=27389&LangID=E. Acesso em: 24 ago. 2021.


8 - https://undocs.org/en/A/HRC/S-31/1. Acesso em: 24 ago. 2021.

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