A notícia da venda de uma “escultura invisível” denominada de “lo sono”, de Salvatore Garau, pelo valor de 15 mil euros suscitou algumas questões sobre a própria possibilidade de existência de uma obra de arte como tal, sendo inevitável associar esse evento ao conto “A roupa nova do Rei”, de Hans Christian Andersen, que trata de um rei cuja vaidade e apreço por roupas o fez contratar os serviços de dois estilistas-tecelões que lhe prometeram costurar um belo traje, cujo tecido tinha a infalível virtude de ficar invisível para as pessoas dissimuladas, incompetentes e destituídas de inteligência.
Com isso, os funcionários do Rei para não parecerem inaptos para as suas funções, mesmo não vendo tecido nenhum, hesitavam em revelar tal fato e, ao contrário, afirmavam que o tecido era bonito, encantador e que tinham se agradado. O próprio Rei, nada vendo, ocultou também referida informação para não parecer incompetente perante seus súditos.
Um temor semelhante talvez tenha tomado conta dos intelectuais, experts e críticos de arte de um modo geral em relação à “escultura invisível”, certamente receosos de serem considerados sem imaginação ou de confessar que olhando para o nada, nada veem. E o que dizer daquele que arrematou a referida obra invisível num leilão, o que será que ele vê? Ou adquiriu um certificado daquilo que não existe porque acredita que exista, ou ainda, porque a exemplo do Rei quer parecer superior e mais inteligente que os demais? E sob o ponto de vista do Direito, será que há um problema jurídico a ser enfrentado, ou assim como o Rei e seus funcionários há o receio de se concluir o óbvio e parecer ignorante perante os demais?
No momento temos apenas perguntas, mas firmes no pensamento de Einstein, segundo o qual são as ideias que movem o mundo, e não as respostas, seguimos adiante para identificar as questões jurídicas associadas à tão inusitada aquisição para tentar saber se a relação de compra e venda da “escultura invisível” possui validade perante as regras vigentes.
Os civilistas têm o problema de saber se esse é um objeto possível, e se ele pode ser pelo menos determinável, considerando a característica essencial da suposta obra de ser “invisível”. Os autoralistas também têm um problema a enfrentar, isso porque, segundo entrevista do escultor da referida obra, ele pretende atrair a atenção e o pensamento das pessoas para um ponto em particular, aquele em que supostamente estaria a escultura, e com isso fazê-la surgir na mente de cada um dos espectadores, constituindo-a a partir de inúmeras formas singulares. Assim, mais uma dúvida surge, que é identificar a autoria dessa obra.
Os direitos culturais também são desafiados. No caso, é preciso aclarar a natureza material e imaterial dos bens que integram o patrimônio cultural para afastar qualquer mal-entendido acerca dessas definições com a “invisibilidade” da polêmica escultura de Salvatore Garau.
A imaterialidade do patrimônio cultural que consiste na impossibilidade do mesmo ser tocado, mas não de ser percebido, consiste numa dimensão do patrimônio cultural que abriga a vida social com os seus sentidos e valores. A referida “escultura” nada abriga além do vazio, logo não comporta nenhum valor ou sentido cultural prévio, nenhum valor de referência cultural apto a conferir-lhe a natureza de patrimônio cultural imaterial.
A “escultura invisível”, portanto, assemelha-se mais a uma performance que tem o público como parte essencial na sua execução do que mesmo um bem cultural, seja material ou imaterial. E como toda criação artística está sujeita a críticas e zombarias como as que o Rei do conto de Andersen enfrentou quando um menino em meio à multidão sem ver, por óbvio, a roupa invisível do Rei gritou “- coitado do Rei ... Está nu!” e a multidão então acompanha em coro “O Rei está nu! O Rei está nu!”.
Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”.
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