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A etiqueta da diversidade indígena no desenho de uma nova moda 


Day Molina | Foto: Divulgação

“Por um mundo onde caibam muitos mundos”, esta é uma frase estampada em uma camiseta da loja Nalimo, da estilista Day Molina, de ascendência Fulni-ô e Aimará. Nalimo é uma das várias marcas concebidas por indígenas no Brasil e que vem despontando no cenário da moda [1], demonstrando o protagonismo de empreendedores indígenas na economia criativa e questionando modelos clássicos de produção. 

 

A moda é um fenômeno cultural que acompanha o desenvolvimento capitalista e a sua expansão colonial. O campo da moda contemporânea é compreendido como um espaço social aberto, que admite discursos plurais acerca da aparência. No entanto, nem sempre foi assim.  

 

O filósofo francês Gilles Lipovetsky percebe a emergência da moda na sociedade aristocrática moderna, em contraposição à valorização da tradição da sociedade estamental da Idade Média, que cultivava a permanência e a reiteração dos costumes. Influenciada pelo pensamento iluminista de exaltação do indivíduo e do progresso, a moda surge como uma cultura do culto da novidade e da originalidade.  

 

Neste ambiente, a moda se constrói como índice de afirmação social, sendo o luxo a sua maior distinção. Há uma cultura de etiquetagem dos corpos, que expressa uma hierarquização dos indivíduos pelas suas vestimentas. 

 

Com a Revolução Industrial na Inglaterra e a Revolução Francesa de 1779, a moda sofreu uma bifurcação. De um lado, há os trajes operários e funcionais, possíveis à classe trabalhadora. De outro, a Alta Costura, representante da moda autoral e do luxo, que dita tendências buscadas pela burguesia no mundo todo. A diluição desse padrão ocorre com a II Guerra Mundial, que afetou dramaticamente a indústria têxtil, com as restrições materiais limitando as possibilidades do consumo da Alta Costura.  

 

A moda contemporânea tornou-se mais democrática, e essa abertura suscitou, por um lado, experiências mais criativas, enquanto, por outro, gerou uma uniformização dos gostos. A indústria cultural afetou também a etiqueta da moda, cujas lógicas da novidade e do descarte se retroalimentam. 

A moda brasileira, cultivada por uma sociedade formada a partir da colonização portuguesa, foi influenciada pela cultura europeia das aparências. Neste universo, as pessoas indígenas foram incitadas violentamente a vestir-se conforme as regras coloniais, e os seus trajes e as suas indumentárias foram interpretados como alegorias exóticas, distantes dos padrões hegemônicos da moda.  

 

Uma moda nacional emancipatória foi objeto de interesse desde o movimento modernista, tendo Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade como um casal modelo da moda antropofágica, que se apropriava das influências europeias, mas também levava consigo as referências brasileiras. Depois surgiram os primeiros estilistas brasileiros, como Dener e Clodovil Hernandes, que buscaram imprimir um traço autoral aos croquis da sociedade urbana em ascensão.  

 

A possibilidade de uma moda genuinamente brasileira, no entanto, só se verifica a partir da valorização das culturas de todos os grupos formadores de nossa sociedade, no contexto da Constituição Federal de 1988. Essa conquista é derivada do agenciamento político dos movimentos indígenas e da população afro-brasileira, refletindo-se em todos os ambientes socioculturais, inclusive na moda, nela contestando os padrões da branquitude europeia.    

 

Hoje o desejo por diversidade e inovação oferece um outro olhar, mais plural e abrangente para a moda, baseado em um contexto de respeito aos direitos culturais e de repúdio ao racismo. Se antes os modelos europeus de vestimenta eram associados às boas práticas da distinção social, hoje eles são diluídos e contestados pela moda contemporânea, com novos protagonismos e argumentos, desde os relacionados à identidades antes marginalizadas até concepções estéticas regionalizadas e artesanais, que contrastam com modelos uniformizantes do mercado fast-fashion.  

 

Os agenciamentos de estilistas indígenas demarcam um território simbólico específico e oferecem uma narrativa própria. Por um lado, demonstram a participação cidadã, civil, econômica e cultural das pessoas indígenas. As marcas Sioduhi Studio e Berimbau, por exemplo, foram destaques na 55ª edição da Casa de Criadores [2], em São Paulo, o maior evento brasileiro de moda autoral. Por outro lado, mesmo diante de uma história de reiteradas violências, expressam a resistência cultural e a identidade de seus povos, cujas práticas e costumes compõem o patrimônio cultural brasileiro e se apresentam como diferencial estético e discursivo no campo da moda.  

 

Os modos de fazer da moda indígena oferecem também uma nova etiqueta ao mercado, na medida em que, além de demonstrar uma criatividade autoral em diálogo com a ancestralidade, propõe um mundo mais sustentável. O uso de materiais orgânicos e de produtos naturais locais, os modelos de vestimentas adequados às condições climáticas, bem como as formas comunitárias de gestão e inclusão do trabalho no desenvolvimento das coleções informam acerca de um modelo de desenvolvimento com envolvimento cultural e socioambiental. Um modelo de mundo, onde cabem muitos mundos.  

 

Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo é advogada, servidora pública, pesquisadora em Direitos Culturais, mestre e doutoranda em Direito pela UFPR, especialista em Gestão Cultural e em Captação de Recursos pela Universidade de Boston, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais (IODA), membro associada do IBDCult e coordenadora do GT Artes da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR. 

 

Notas:  [1] Ver também Sioduhi Studio; Tucum; We’e’ena Tikuna; Sofia Gama; Maurício Duarte 

 

 

 

Referência: 

 

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: A moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 

 

Expresso meu agradecimento nominal à Ana Carla Magna (arquiteta, produtora cultural e pesquisadora na área da moda), pelo incentivo e contribuição às reflexões deste artigo. 

 

 

 

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