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A importância da culinária como patrimônio cultural imaterial


*Imagem: ally j; CC BY


“La baguette française, notre pain quotidien"


A história da civilização tem uma intrínseca relação com a alimentação. As guerras e as revoluções, a prosperidade e a miséria, as relações sociais, o papel de cada indivíduo na comunidade, as divisões de tarefas por gênero e os processos migratórios estão intimamente ligados, numa relação de causa e efeito, com a disponibilidade do alimento e com a sua forma de preparação e consumo (1).

O tema repercute tanto na garantia ao direito à alimentação (em quantidade suficiente e de qualidade) (2), como no vínculo do indivíduo com o seu lugar e com a sua cultura de origem. A culinária é, nesse sentido, produto da nossa forma de vida, do nosso conhecimento agrícola, das práticas sociais e culturais, da religião, do gosto, da tradição e do simbolismo dos nossos costumes, exprimindo a identidade social e cultural de uma comunidade (3).


Cada culinária transmite uma história única, um estilo de vida, valores e crenças. O patrimônio cultural de uma comunidade, nesse sentido, não é apenas constituído de monumentos e objetos representativos de uma cultura tradicional, mas também de expressões, conhecimentos e manifestações sociais, tais como as práticas alimentares.


A Unesco, identificando a importância desse patrimônio, implementou, por meio da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (“Convenção de 2003”), diversas medidas de salvaguarda - tais como a identificação, documentação, preservação, promoção e valorização do patrimônio cultural imaterial (“PCI”) -, estabelecendo, ainda, dois tipos de listas de bens intangíveis: (i) a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, que ajuda a evidenciar e a salvaguardar a diversidade desse patrimônio e a sensibilizar para a sua importância, e (ii) a Lista do Patrimônio Cultural Imaterial com Necessidade de Salvaguarda Urgente, que visa a cooperação internacional e prestar assistência, em caráter de urgência, às partes interessadas, para que tomem as medidas adequadas de preservação do referido patrimônio.


Apesar de as primeiras candidaturas referentes à culinária terem suscitado inúmeros debates, devido à alegação de alguns especialistas de que essas expressões não se enquadravam no quadro de tradições orais, das artes ou das manifestações culturais da Convenção de 2003, em 2010, Cécile Duvelle, chefe da seção de patrimônio cultural imaterial da Unesco, encerrou a discussão declarando que “na Unesco, nunca houve dúvida de que o patrimônio alimentar está totalmente integrado à noção de PCI”, pois “não pode haver acontecimento cultural sem uma dimensão alimentar, seja de natureza comercial ou não”. (4)


Desde então, as candidaturas alimentares se multiplicaram: a cozinha tradicional mexicana (2010), a gastronomia gourmet francesa (2010), a dieta mediterrânea (2013), o kimchi coreano (2015), a cerveja belga (2016), a arte do pizzaiuolo napolitano (2017), o terere paraguaio (2020) e outros. Os Estados entenderam, assim, que a importância da inserção das expressões alimentares na Lista Representativa da Unesco para salvaguarda desse patrimônio cultural engendra uma movimentação econômica, social e cultural relevante para o país e para as comunidades locais.


Prendiamo un caffè!”. Não é somente um convite usual nas cidades italianas, mas uma desculpa social, uma oportunidade de socializar para uma discussão simples, para ter um momento de descontração diário, no trabalho ou em qualquer lugar. Trata-se de uma tradição tão arraigada na cultura italiana que o Ministério da Política Agrícola, Alimentar e Florestal (Mippaf) (5) apresentou, neste mês, duas candidaturas a Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade na Unesco com relação à arte do café italiano: “o rito do café expresso italiano tradicional”, verdadeira e própria arte, e alternativamente “a arte da cultura do café napolitano”, uma tradição entre ritual e sociabilidade.

Da mesma forma, Roselyne Bachelot-Narquin, Ministra da Cultura francesa, anunciou, nessa semana, sua decisão de apresentar como candidatos à Lista Representativa da Unesco “o saber e a cultura da baguette de pain” (6). Segundo o ministério francês, “a baguete é um emblema do patrimônio cultural francês, o resultado de um conhecimento tradicional presente em todo o território nacional, francês e no exterior. A sua origem remonta aos pães longos do século XVII, mas o seu consumo foi generalizado durante o século XX”. A imagem do francês com sua boina, sua camisa listrada, seu copo de vinho tinto e sua baguete debaixo do braço é um pouco exagerada, mas na França a baguete ainda é o tipo de pão mais popular e consumido em todo o país.


Para esses Estados, não há dúvida que as práticas relacionadas à alimentação constituem práticas culturais que merecem ser consideradas seriamente, sob diversos prismas. Ao contrário do Brasil, que até agora não tem nenhum patrimônio cultural alimentar inscrito na Lista Representativa da Unesco, eles compreenderam que reconhecer a existência de um setor alimentar no panorama cultural viabiliza a abertura de diversos canais de articulação entre a cultura e a economia, entre o comércio e o artesanato e políticas culturais e de infraestrutura. Isto é, os alimentos e a sua respectiva culinária são um motor gerador de negócios, do turismo e da cultura local, resultando em trocas importantes nas relações comerciais e possibilitando o desenvolvimento sustentável, a proteção do ambiente e a preservação dos ecossistemas que estão intimamente ligados à cultura.


A alimentação tornou-se, dessa forma, uma forma de fomento de políticas de crescimento local e protagonista de um setor que permite, nacional e internacionalmente, escolhas de desenvolvimento sustentável e de biodiversidade, vitais para o desenvolvimento de qualquer Estado nos próximos anos e para a preservação do patrimônio cultural de suas populações.

*Anita Mattes, advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, Cultore della materia na Università Bicocca em Milão, doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbonne, pesquisadora do Centre d’Étude et de Recherche en Droit de l’Immatériel (CERDI/Saclay) e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)


(1) M. MONTANARI, Il cibo come cultura, Economica, 2004; J. LE GOFF, La civilisation de l’Occident médiéval, Champs Histoire, 2008; e C. LEVI-STRAUSS, Le cru et le cuit, ed. Française, 2009.


(2) L. SCAFFARDI, Alimento e cultura entre sustentabilidade e pandemia: um desafio inédito para o direito, Rev. GEPDC/PPDG/UNIFOR, fev. 2021, disponível também no site do IBDCult: www.ibdcult.org.


(3) Sobre cultura e alimentação ver: R. BARTHES, Pour une psyco-sociologie de l’alimentation contemporaine, in J.J. HERMARDIQUER, Pour une histoire de l’alimentation, Colin, 1970; C. FISCHLER, Food, Self and Identity, Rev. Social Science Information, v. 27, 1988; e J.P. POULAIN, Sociologias da Alimentação, UFSC, 2004.


(4) https://www.culture.gouv.fr/Sites-thematiques/Patrimoine-ethnologique/Soutien-a-la-recherche/Colloques-seminaires-et-journees-d-etude/2012/Colloque-Le-Patrimoine-Culturel-Immateriel-par-le-CCIC; e J. CSERGO, Quelques enjeux de l’inscription de patrimoines alimentaires à l’Unesco, Rev. Géoéconomie, vol. 78, n. 1, 2016.



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