Desde a celebração de coroação dos reis da França, que acontecia na Catedral de Reims, como, em 1962, no banquete da reconciliação franco-alemã entre o general de Gaulle e Konrad Adenauer (1), o vinho champanhe, produzido pelas vinhas da região de Champagne, na França, sempre foi usado na história para enfatizar a solenidade ou o simbolismo de um evento relevante.
Tanto é assim que o Couteaux, Maisons e Caves (2) da região é desde 2015, inscrito pela Unesco na Lista de patrimônio cultural mundial (3) e o vinho dessa região de Champagne é protegido juridicamente tanto por uma denominação de origem francesa específica Appellation d’Origine Contrôlée (AOC) como por uma proteção europeia Appellation d ́Origine Protégée (AOP) (4).
Apesar do AOC e o AOP serem proteções estritamente francesa e europeia, esses selos são bastante valorizados no mercado internacional e amparados por leis no âmbito do comércio nacional e internacional. Eles garantem que todas as etapas da produção sejam realizadas de acordo com um know-how reconhecido na mesma área geográfica, assim como promovem uma reputação referente à exclusividade ligada a fatores naturais e humanos, proporcionando um produto ou serviço com características próprias que traduzem a identidade e a cultura de um espaço geográfico.
Existe, portanto, um sistema jurídico de proteção de propriedade intelectual que permite um combate à contrafação desses vinhos na França e visa, igualmente, proteger os direitos dos vinicultores internacionalmente.
Contudo, alguns países não aderiram integralmente a esse sistema e, assim, esses produtos não são protegidos em alguns mercados. É o que ocorreu recentemente com o champanhe no território russo. A Rússia, por exemplo, aprovou, em julho deste ano, uma emenda à lei que regula as bebidas alcoólicas em seu território, autorizando apenas os produtores nacionais a exibirem o nome “champanhe” em suas garrafas.
Ademais, os vinhos originais da região de Champagne, na França, somente podem usar o nome “champanhe” por meio de caracteres latinos no rótulo principal, mas devem, para isso, abandonar o termo “Shampanskoe”, tradução de champanhe para o russo, e apresentarem o termo “vinho espumante” no contra-rótulo.
Essa alteração legislativa visando a promoção dos vinhos espumantes de produção local russa causou uma alerta pelo Comité Interprofessionnel du Vin de Champagne (CIVC) (5), órgão responsável pela gestão das denominações de origem do champanhe que já protegeu o rótulo em inúmeras outras tentativas indevidas de uso do nome, como o uso pela Dior, por cigarros e até com produtores americanos que seguem regras próprias de proteção de nome ou denominação (6).
A consolidação e a defesa de selos de denominação de origem é um desafio para a agroindústria mundial e, também, para a brasileira. Sua importância é oportunidade de desenvolvimento local, uma vez que está fundamentada no arranjo de redes locais de produção que reconhecem os recursos do próprio território, da terra e, principalmente, da cultura local. Mas também é uma oportunidade para o incremento do comércio internacional. Diversos países já perceberam essa importância e investem pesadamente nesse sistema, como a França, que seguramente perquirirá uma forma de proteção de seu champanhe junto às cortes internacionais. Nos resta acompanhar....
*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e advogada do Studio MATTES *Anauene D. Soares é advogada, perita e restauradora de obras de arte. Autora da obra Direito Internacional do Patrimônio Cultural: o tráfico ilícito de bens culturais e associada do IBDCult
1 - Veja a entrevista de Yves Tesson, historiador e expert em champagne, consultor da Univerdade de Reims Champagne-Ardenne: https://visitworldheritage.com/fr/eu/le-champagne-c’est-toute-une-histoire/26f9e6b9-5b82-4754-b0b8-4fdbb101ca5b.
2 - Encostas, casas e adegas (trad. livre da autora)
5 - Mais informações em www.champagne.fr/fr/accueil
6 - Veja mais informações em https://www.ina.fr/contenus-editoriaux/articles-editoriaux/1987-le-comite-champagne-defend-les-interets-francais-aux-usa; e https://www.champagne.fr/it/notizie-civc/difesa-della-denominazione-champagne/la-protection-appellation-champagne-affaire-de-tous.
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