*Imagem: PublicDomainPictures CC BY.
Reconhecida desde 2019 pela Unesco como patrimônio cultural imaterial da humanidade, nos termos da Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003 (“Convenção de 2003”), foi, inicialmente, inscrita na Lista Representativa, a pedido da Itália, Áustria e Grécia, com o objetivo específico de evidenciar e de salvaguardar a importância da prática da transumância – migrações sazonais de atividades ligadas ao pastoreio.
Em 2023, o pedido foi alargado para Albânia, Andorra, Croácia, França, Luxemburgo, Romênia e Espanha, destacando a importância da salvaguarda de uma tradição cultural que, apesar de ser praticada em várias partes do mundo, como no Brasil [1], Portugal e países do Oriente, o presente reconhecimento da Unesco se refere especificamente à prática pastorícia que consiste na migração sazonal de gado, ovelhas e cabras localizadas no Mediterrâneo e nos Alpes [2].
Trata-se de um patrimônio cultural muito antigo que remonta suas raízes na pré-história [3] e se desenvolveu principalmente na Europa, criando rotas migratórias milenares. A transumância é uma das atividades mais simbólicas do pastoreio, sendo corriqueiro as pequenas cidades das encostas dos Alpes observarem pelas suas ruas estreitas a transumância ascendente, durante o início da primavera - a subida de rebanhos (ovinos, caprinos e bovinos) para as pastagens montanhosas, e, a transumância descendente, no outono, quando os rebanhos escapam do frio das montanhas para temperaturas mais amenas das planícies.
No mês de setembro do presente ano, em Portugal, tivemos o XIII Encontro Internacional da Cultura (EIDC), promovido pelo Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) e pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). O tema deste ano foi “O Ecossistema de Proteção do Patrimônio Cultural”. Assim, discutiram-se questões relevantes sobre proteção e preservação dos bens culturais, assim como a existência dos diferentes instrumentos legais, nacionais e internacionais, voltados para a proteção dos bens culturais, refletindo-se, ainda, sobre a importância de demandas políticas, sociais, econômicas e ambientais relacionadas ao patrimônio cultural.
A relação entre natureza e cultura foi, nesse sentido, um tema recorrente em Lisboa. E, de fato, pragmaticamente, se nos atermos, especificamente, as características do patrimônio cultural imaterial, observamos que a relação entre cultura e a natureza sempre foi concebida pelo homem como valores intrinsecamente ligados, visto que a identidade cultural de cada povo surge e se desenvolve no ambiente natural em que vive. Isto é, a identidade de um povo está profundamente ligada ao território que ocupa. O ser humano usa e transforma continuamente a natureza, aproveita os seus recursos, que garantem a sua subsistência, e a adapta às suas necessidades materiais e espirituais. Essa relação entre cultura e natureza é, consequentemente, um processo diacrônico, que evolui ao longo do tempo, refletindo diferentes fases e trajetórias históricas.
Dessa maneira, temos a transumância, que se refere a um conhecimento e práticas culturais que abarcam a gestão e a utilização da paisagem local juntamente com o cuidado de animais. Os pastores transumantes possuem uma verdadeira cultura naturalista para garantir a melhor forragem ao animal, incluindo conhecimentos de climatologia e geográficos detalhados de seus territórios.
Ademais, transumância não é somente uma prática que se perpetua ao longo do tempo, mas é igualmente um rito moldando secularmente as relações entre comunidades, animais e ecossistemas, dando origem a cerimônias, festivais e atividades sociais e culturais que caracterizam o verão e o outono dessas regiões. Uma prática cultural que se repete ano a ano, juntamente com a natureza, confirmando o ciclo das estações.
Nesse sentido, tal atividade de pastoreio migratória é considerada um método agrícola muito sustentável e eficiente, contribuindo para a manutenção da biodiversidade, evitando o desaparecimento de áreas abertas e da fauna e flora a elas associadas, interrompendo, assim, o aumento da vegetação inflamável e reduzindo o risco de incêndios nessas regiões [4].
A Unesco, ao reconhecer a transumância como patrimônio cultural imaterial da humanidade, decidiu não somente salvaguardar tal prática para as gerações futuras, como também distinguir um saber que visa gerir a natureza de forma sustentável, evidenciando um verdadeiro equilíbrio entre ser humano e natureza. Preservar um patrimônio cultural dessa relevância é reconhecer toda uma cultura milenar, ritos, saberes e métodos, mas, acima de tudo, reconhecer a importância da compatibilidade e interligação entre a natureza e a cultura.
Anita Mattes, Doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbone, professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Notas: [1] No sul do Brasil é conhecido como “invernada”; vide: https://aspta.org.br/files/2023/08/Cartilha-ASPTA_WEB.pdf.
[2]https://whc.unesco.org/en/tentativelists/5005; https://www.unesco.it/it/iniziative-dellunesco/patrimonio-culturale-immateriale/la-transumanza; https://unesco.cultura.gov.it/projects/transumanza.
[3] Walter Capezzali, La Transumanza nella storia e nella bibliografia in Tratturi e transumanza: arte e cultura, Arkhé, L'Aquila, 2008, p. 65.
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