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A paródia de obras de arte e a polêmica da festa olímpica dionisíaca 


Foto:  No alto, “A morte de Marat”, de Jacques-Louis David, Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique em Bruxelas. Embaixo, “O banho de Caetano”, na quarentena, 2020, de Carolina de Castro Wanderley. 

 

Ainda há pouco, quando da abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, uma alegoria criada pela comissão organizadora do evento causou acaloradas discussões nas redes sociais.  Um tableau vivant, do francês quadro vivo, foi apresentado na festa, dentre uma profusão de tantas outras belezas que remetiam à tradição artística da França.    

 

O tableau vivant é uma forma de expressão artística que ganhou projeção depois da invenção da fotografia, usado para remontar pinturas famosas com pessoas reais em cliques fotográficos. Nas vanguardas históricas e na arte contemporânea, as releituras foram feitas em quadros, filmes e em performances.  Às vezes engraçadas, noutras bastante críticas, estas releituras ganharam o mundo durante a pandemia, quando internautas usaram o seu tempo livre para refazer quadros memoráveis.   

 

Voltemos às Olimpíadas. É costume entre países anfitriões de grandes campeonatos esportivos trazer um pouco de sua cultura nas festividades de abertura dos jogos, numa estratégia de propaganda do país e também de ambientação dos esportistas e dos espectadores às melhores características da nação que recepciona a todos.  A França o fez em grande estilo, permitindo que a cidade de Paris convulsionasse em cultura, sendo televisionada mundialmente com releituras e atualizações de renomadas obras de arte e de espaços culturais famosos. 

 

Neste contexto, um tableau vivant apresentou um grupo de drag queens ao redor de uma grande mesa.  Sobre ela assentava-se Philippe Katerine, multiartista francês, com o corpo seminu pintado de azul, enfeitado com flores e frutas.  Todos felizes, em festa, enfeitavam a celebração dionisíaca.  Dionisíaca, foi isso que dissemos?    

 

Dionísio é um deus do panteão grego, patrono das festas e inventor do vinho, elixir que faria as artes aflorarem do coração dos mortais.  Na Grécia antiga, as festas dionisíacas aconteciam de fato e eram momentos de liberação dos instintos, oportunidade de congregação do grupo e de alegria, sobretudo, de sátira e riso.  

  

Pois bem, à primeira vista muitas pessoas mundo afora pensaram que a cena reproduzia a célebre L’Ultima Cena, de Leonardo da Vinci, de cerca de 1498.  Protestos por conta da pretensa sátira à cena cristã foram registrados, inclusive partindo da Conferência dos Bispos Católicos da França.  Contudo, num exame mais apurado, a presença do azul e alegre Dionísio, deus grego da festa e do vinho, revelou que a remontagem se referia à obra A Festas dos Deuses, do pintor holandês Jan van Bijlert, de cerca de 1635.  A obra se encontra hoje em dia em Dijon, França, no Museu Magnin.  Logo, faz parte do patrimônio cultural que a França desejava mostrar ao mundo.   

 

A revelação da inspiração do tableau vivant foi feita por Thomas Jolly, diretor artístico da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos Paris 2024, que declarou que a intenção era falar do amor e da inclusão através da releitura da festa dos deuses gregos.  Convenhamos, é de amor e de inclusão que nosso mundo precisa.   E, concordemos, a chance de fazer o mundo pensar em paz através do riso e da sátira é uma grande ideia! 

 

Percebemos que a confusão entre a festa cristã e a festa dionisíaca aconteceu por conta da fama que a cena da Última Ceia de Da Vinci alcança e do pouco conhecimento que a população em geral tem da obra de Jan van Bijlert.  Mas o que causou realmente surpresa foi a incapacidade de nosso mundo atual entender que o riso na arte é uma forma de construção de novos significados e novas leituras, como já trazia o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895), e de promoção de uma sociedade plural e democrática. 

 

O riso, a sátira e notadamente a paródia são legalmente permitidas em quase todas as nações e consubstanciam o constitucional direito de liberdade de expressão.  É um expediente empregado amplamente na história da arte.  Tem limitações, como todo direito as tem.  Mas, no contexto artístico, é majoritariamente aceito em releituras de obras de arte como a apresentada na abertura das Olimpíadas.  

 

E, lembre-se:  a Última Ceia não foi parodiada na festa dos jogos olímpicos.  Mas já o foi várias vezes, tanto no cinema quanto na arte contemporânea, no mundo dos HQs e no universo virtual.   Andy Warhol, artista pop de projeção no século XX, fez a sua versão da obra em 1986.  Em 1961, o cineasta Luis Buñuel trouxe a cena no filme Viridiana:  em torno da mesa da ceia havia moradores de rua.  Até mesmo a Turma da Mônica já teve sua versão da última refeição de Cristo! 

 

Por mais satírica que eventualmente tenham sido estas paródias, o resultado final sempre foi o de enaltecimento da obra originária de Leonardo Da Vinci que continua figurando como uma das mais importantes obras primas da arte e da cultura mundial.  Somente o que é icônico, precioso e conhecido é parodiado.  

 

A paródia, em conclusão, não é uma ofensa ou uma forma de escárnio.  Ainda que ela traga o riso por vezes, sua intenção é repensar a realidade através da nova significação de um ícone, que sempre resta, em uma última análise, homenageado.   

 

 

Carolina de Castro Wanderley, advogada, editora literária, doutoranda em Letras Estrangeiras Neolatinas pela UFRJ, pesquisadora na área de Direito e Literatura, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: carolina@ssebastiao.com.br

 

 

 

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