*Imagem: WikiImages; CC BY.
Semana passada, após o Dia do Professor, Samuel Paty foi decapitado na França ao lecionar sobre liberdade de expressão a partir das charges do profeta Maomé, reproduzidas pelo jornal satírico Charlie Hebdo.
A forma como Paty foi assassinado é uma mensagem para todos os intelectuais e professores que estão nas trincheiras dessa profissão de risco e defendendo incansavelmente o livre pensar.
Não reproduzo a visão maniqueísta entre “civilização” e “barbárie”, pois ela carrega um olhar colonizado e facilmente capturado por projetos autoritários de poder, que historicamente hierarquizam diferentes óticas de mundo e simplificam as relações complexas existentes nas disputas políticas. É o que se pode depreender da juventude periférica retratada no filme “Os miseráveis” de Ladj Ly (2019), obra premiada em Cannes, junto com Bacurau, que faz uma atualização do explosivo contexto político retratado na obra homônima de Victor Hugo.
Aqui no Brasil não é diferente. Na Zona Sul de Rio de Janeiro, por exemplo, em um caso um tanto quanto recente, na véspera do último Natal, um coquetel molotov foi arremessado na sede do Porta dos Fundos como retaliação à produção e distribuição da obra audiovisual “A primeira tentação de Cristo”, uma comédia que retratava um Jesus com orientação homossexual. O filme foi impedido de ser exibido por uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio, mas depois liberado por uma liminar do ministro Dias Toffoli do STF.
Ambos atentados demonstram que a questão sobre os limites da liberdade de expressão está ultrapassando o debate das ideias e chegando às vias de fato, sobretudo quando em rota de colisão com a liberdade religiosa.
O professor Paty certamente ensinava em suas aulas do Ensino Médio que os direitos de liberdade – dentre eles a religiosa, a de imprensa, a científica e a de pensamento – são frutos das revoluções burguesas do século XVIII, sobretudo a Revolução Francesa, que trazia a liberté como um de seus lemas. Para o leitor que não lembra dessa aula, a proposta revolucionária era afastar a monarquia absolutista de uma esfera mínima de direitos individuais que deveriam ser respeitados pelo próprio Estado.
No mundo jurídico das democracias liberais, dentre elas a francesa e a brasileira, a liberdade de expressão pode ser considerada um direito-mãe, donde derivam diversos outros direitos de liberdade, tais como a liberdade de expressão artística, de cátedra e a religiosa. Todas surgem do mesmo ventre.
Não há hierarquia entre tais direitos – chamados também como direitos de primeira dimensão – pois todos são igualmente importantes para a construção do Estado Democrático de Direito, embora o Supremo Tribunal Federal (STF) venha entendendo que a liberdade de expressão assume uma “posição preferencial” quando entra em choque com outros direitos fundamentais.
Gregório Duvivier, intérprete deste Jesus Cristo no especial de Natal do Porta dos Fundos subiu ao púlpito do STF, ano passado, para defender a liberdade de expressão artística, durante audiência pública, em outro caso que ficou conhecido como “filtros da ANCINE” (ADPF 614).
Em sua defesa irônica e memorável da liberdade de expressão artística contra censura, Duvivier parafraseou Freud ao ser questionado sobre o que achava da queima de livros feita pelos nazistas: “já é um avanço; antes queimavam os autores”.
Veja aqui o vídeo:
Os direitos de liberdade, que são considerados direitos humanos e fundamentais, foram conquistados com muita luta e sangue. Não caíram do céu. Muitos morreram para que as futuras gerações pudessem exercitar tais direitos culturais. Mas, da mesma forma que foram conquistados, destaque-se, também podem ser retirados.
O esperado é que esses recentes acontecimentos não provoquem uma autocensura, ainda mais em tempos de aulas gravadas em plataformas de ensino a distância. Pois, muito pelo contrário, em períodos como esses é que se torna necessário exercitar o pensamento crítico.
Sigamos, Paty.
*Mário Pragmácio é professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional
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