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Afinal, temos ou não “direito à cultura” ?


(Obra de Chico da Silva) - Licenciado em CC BY


O Artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, datada de 10 de dezembro de 1948, preceitua que os Estados e a comunidade internacional têm o dever de assegurar os “direitos econômicos, sociais e culturais” indispensáveis à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade de cada pessoa.


Com relação aos direitos econômicos, ninguém os confunde com a estrutura principal com a qual se relacionam, a economia; ou seja, não se fala de “direito à economia”. A mesma coisa ocorre com os direitos sociais, que são percebidos enquanto unidades ou conjuntos, mas não se diz que há um “direito à sociedade”. Com os direitos culturais, contudo, a coisa não vem sendo encarada da mesma maneira, pois muitos, não se conformando com esse recorte, referem-se a um suposto “direito à cultura”. Mas será isso correto? Antecipo que a resposta envolve aspectos lógicos, jurídicos e ideológicos de como se encara a questão.


Se observamos a própria Declaração acima referida, a despeito de mencionar vários direitos, não especifica um direito à cultura. Neste campo, ela estabelece no Art. 27, 1, que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade”. Seguindo o mesmo entendimento, não se encontra na Constituição brasileira a expressão “direito à cultura”, nem mesmo no artigo inaugural da seção dedicada ao tema, o 215, segundo o qual “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”.


Todavia, não se pode negar a existência de ordenamentos jurídicos, como o português, em cujo Artigo 73.º, 1, da respectiva Constituição, estabelece que “todos têm direito à educação e à cultura”, mas ao pormenorizar esses direitos, relativamente ao último, especifica que “o Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural”; ainda no universo do direito comparado, a Constituição espanhola, em seu Art. 44, 1, prevê que “os poderes públicos promoverão e tutelarão o acesso à cultura, o que é direito de todos”. Contudo, Art. 9, 2, especifica que corresponde a tais poderes promover as condições para “facilitar a participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, cultural e social”. Enfim, a interpretação sistêmica das duas constituições ibéricas nos permite emparelhar o suposto direito à cultura ao que é previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição brasileira como direitos culturais.


Em termos da doutrina jurídica, nomes de porte gigantesco, como é o caso de José Afonso da Silva, em sua “Ordenação Constitucional da Cultura” (São Paulo: Malheiros, 2001, p. 48), dedica um tópico ao “direito à cultura”, que considera ser “um direito constitucional fundamental que exige ação positiva do Estado”, embora admita que “isso suscita também diversos problemas relativamente aos limites da atuação estatal neste campo”.

É possível cogitar que a problemática vislumbrada pelo mencionado jurista decorra da inadequação de se imaginar que um elemento inexorável à vida em coletividade, a cultura, que nessa condição concorre com economia e com o próprio direito e que, aliás, muitos entendem ser a fonte que os gera, possa ser objeto, ela toda, de submissão ao campo jurídico.


Olhando a questão pelo prisma da Ciência do Direito, o problema esbarraria no entendimento de que uma norma para ser jurídica deve ter a possibilidade de ser descumprida, pois se inexistir essa possibilidade não há sentido em ela ser criada. É exatamente o caso da cultura, na qual estamos todos inseridos e nem mesmo o mais aguerrido legislador, administrador ou jurisconsulto poderia nos retirar dela, pois tudo o que for feito em decorrência de sua ação é também cultural.


Por conseguinte, a única possibilidade de efeito do direito sobre a cultura é a que decorre de recortes específicos neste gigantesco universo, proibindo alguns comportamentos, reafirmando outros, seja por permissão ou até mesmo por obrigação. Esses “recortes” são precisamente os direitos culturais.


Porém, na questão posta há algo que vai além do inebriante manuseio da lógica jurídica. Trata-se da dimensão ideológica que a expressão “direito à cultura” carrega, uma vez ser ela a herdeira legítima da divisão das pessoas e dos povos em civilizados e não civilizados, ou como também diziam os imperialistas, “com cultura” ou “sem cultura”, o que explicava a possibilidade de os primeiros dominarem os segundos, geralmente com o pretexto falsamente altruísta de lhes dar o que faltava: cultura.


Portanto, reivindicar um “direito à cultura” significa admitir que se busca um bem do qual estamos desprovidos e que poderá nos ser dado por alguém, ou seja, é escancarar a porta para a submissão a um certo padrão cultural. Defender “os direitos culturais”, ao contrário, é reconhecer a existência da própria cultura e da cultura dos outros e, a partir dessa consciência, pleitear aprimoramentos e a possibilidade de livre migração entre elas.


Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP).



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