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Ainda estamos aqui 


Fernanda Torres como Eunice Paiva em Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles

A atribuição de sentido às palavras é um processo que ocorre coletivamente. Também a memória, para ser dotada de algum significado que se relacione às pessoas e à história, precisa de esforço para além do individual, senão seria o equivalente a perguntar se uma árvore que cai em uma floresta quando ninguém está lá para ouvir faz barulho.  

 

Nos últimos anos, o Brasil tem vivenciado a tradução dos sentidos que convencionou dar à palavra “anistia”, hoje diariamente empregada na ambientação de playground político que planeja golpes de Estados com a participação de “kids pretos” e convoca cidadãos de meia idade, nostálgicos por um Brasil autoritário, dispostos a se radicalizar para ocupar QGs do Exército e depredar os Três Poderes com uma certeza singela de que nada poderia lhes acontecer, tudo na conta da memória daquela anistia que deixamos passar. 


Mas esse passado, que lá ficou por força do cansaço e de um pacto silencioso a ditar regras de esquecimento e perdão, é como um vírus latente, esperando o corpo vacilar. E corpos sempre vacilam. Fincamos o olhar no morto e esquecemos o que deixa pela frente (porque é nesse sentido que o futuro acontece!), são Marias e Clarisses, é a família Paiva, mas é também tudo o que está do lado contrário e levanta a bandeira de uma rememoração às avessas, que busca aquilo pelo qual deveríamos nos envergonhar: o bolsonarismo e tudo o que representa, o domínio das milícias, a ideia do terrivelmente evangélico como uma entidade cristã que expurga os infiéis à base de bala, o radicalismo que leva alguém a se explodir em trajes de Coringa, na Praça dos Três Poderes, em um plano mal executado para assassinar um ministro do STF, e por aí vai.  


 Ambos os lados trabalham com seus ídolos e ícones transmutados em ideias, consolidadas para angariar reforços às trincheiras que tiram da história e da memória as justificativas necessárias à ação presente e aos projetos de futuros, inclusive considerando o que Waly Salomão deixou bem claro, “a memória é uma ilha de edição”. Enquanto a anistia festiva induzia a memória brasileira a um esquecimento programado, famílias destruídas buscavam uma reparação quase inalcançável que viria a acontecer apenas décadas depois, com as indenizações pagas pelo Estado brasileiro em reconhecimento às graves violações aos direitos humanos e com a Comissão Nacional da Verdade, que ainda contou com episódios por demais convenientes de mortes de depoentes. Enquanto Eunice Paiva passava pelo doloroso processo de esquecimento conduzido pelo Alzheimer, o País lembrava e esquecia, em transe por manter algum grau de civilidade mas já sucumbindo à caquistocracia, palavra do ano de 2024 eleita pelo The Economist, não coincidentemente demonstrando uma tendência global.   


A estrondosa bilheteria de Ainda Estou Aqui, a inclusão do filme na shortlist do Oscar e a previsão de vitória pelo The New York Times, o livro homônimo liderando a lista de mais vendidos da Amazon no Brasil e as atuações das Fernandas, filha e mãe, como Eunice Paiva, nos lembram, nas palavras de Marcelo Rubens Paiva, que “a acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência”.   Além disso, mostram que o fôlego para sentir que teimosamente ainda estamos aqui é acompanhado pela lucidez de saber quem mais e quais ideais também ainda estão. Parece ser sempre cedo considerar possível baixar a guarda, mesmo quando um general é preso por planejar a abolição violenta do Estado Democrático de Direito (em palavras melhores: por planejar um golpe de Estado).  

 

Em caso de dúvida, basta ir às seções de comentários que acompanham as notícias do filme nos grandes veículos de comunicação, ou as que noticiam a prisão do General Braga Netto. Por isso, é sempre bom lembrar, também nas palavras de Marcelo Rubens Paiva, que “a família Rubens Paiva não é a vítima da ditadura, o país que é”.   


Cibele Alexandre Uchoa, Escritora e Pesquisadora. Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR com bolsa da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Funcap. Sócia-fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult   

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