É escandalosa a forma como o Direito de Sequência, no Brasil, vem sendo vilipendiado. Não adianta dizer que é um direito inalienável e irrenunciável, com previsão legal e supralegal; que está expresso na Lei de Direitos Autorais (art. 38), estampado na Convenção de Berna (art. 14) e sacramentado pelo STJ no caso do filho do Cândido Portinari (REsp 59.4526/2009), pois o autor continuará sem perceber o mínimo de 5% que faz jus sobre o aumento do preço eventualmente verificável em cada revenda de suas obras de arte.
Esse mecanismo foi importado da legislação francesa, no início do século passado, integrando um sistema de direito autoral, aliás, que o Brasil é filiado, bastante distinto do modelo anglo-americano (também chamado de copyright). É que a perspectiva europeia continental, com forte influência iluminista, confere uma centralidade ao criador das obras intelectuais; algo que o sistema anglo-americano não faz com tanto vigor.
Cerca de 80 países possuem legislação que estabelecem regras similares ao direito de sequência. Dos três maiores mercados de arte do mundo, apenas os britânicos aderiram a esse mecanismo que prevê repasse sobre a revenda, a partir de 2006, sobretudo após a Diretiva Europeia 2001/84/EC. China e EUA, por outro lado, não possuem normas que obrigam repassar uma porcentagem sobre a valorização das obras de arte em caso de revenda.
Brasil, Portugal e Uruguai possuem sistemas em que o direito de sequência se aplica sobre qualquer alienação, feita por qualquer pessoa. Outros modelos optam pela incidência do direito apenas sobre operações havidas em leilão (França) ou em galerias autorizadas (Alemanha). Aliás, os leilões são sempre uma boa chance de se postular o Direito de Sequência no Brasil, pois há a possibilidade de se rastrear o tão nebuloso valor de venda e do arremate. É muito difícil o artista receber os tais mínimos 5%, porque não há transparência em muitas transações do mercado de arte, que historicamente sofre com a pecha de ser opaco.
Será que o leilão do Banco Santos vai reproduzir o modelo de negócio do mercado e ignorar o direito de autor?
De acordo com os autos do processo nº 2005.61.81.900396-6, que tramita na 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, o Juiz Federal Dr. Fausto Martins de Sanctis decretou o sequestro de todos os bens imóveis e móveis do Sr. Edemar Cid Ferreira, de todas as coleções de arte e os acervos de peças pessoais e de todas as instituições relacionadas ao banco, tal como o Instituto Cultural Banco Santos e a Cid Collection, também controladas pelo banqueiro. Com isso, foram descobertas em torno de 12 mil objetos de arte e decoração sob a posse do banco e do ex-banqueiro, distribuindo esses bens entre instituições culturais públicas para as salvaguardar e como depositárias fiéis no processo.
Após decretada a falência do Banco Santos S/A, pela 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, capital, em setembro de 2005, foi definido que o acervo fosse posto a leilão de origem falimentar, de acordo com o proposto pelo interventor da já massa falida do Banco Santos S/A, a fim de suprir os credores por suas perdas patrimoniais decorrentes dos investimentos realizados no banco.
Com exceção da coleção de bens arqueológicos e paleontológicos, dentre outros bens culturais que estão tutelados por normativas do patrimônio cultural brasileiro, serão designados para leilão, a partir desta segunda-feira, entre os dias 21 de setembro e 2 de outubro de 2020, quase 2.000 obras de arte contemporâneas que estavam sob os cuidados do MAC que se realizará essa semana conforme processo nº 0042267-56.2015.8.26.0100, da 2ª Vara Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central da Comarca da Capital/SP. Assim, todo e qualquer bem cultural protegido adquirido e pertencente ao acervo, foi fruto de um ato ilícito, logo advindos de um tráfico ilícito de bens culturais.
Será que todas estas obras que serão alienadas terão o mínimo de 5% da “mais-valia” dos arremates do direito de sequência resguardados pelo leiloeiro ou pelo Juízo e remetidos para os autores ou seus familiares?
Quando se trata de um leilão judicial, caberia ao Poder Judiciário se pautar pela legalidade e observar esse maltratado direito. O reiterado e automático argumento de que o preço da primeira venda não é conhecido, não deveria ser um impeditivo ao exercício desse direito fundamental, afinal a Constituição Federal de 1988 diz que é dever do Estado garantir o pleno exercício dos direitos culturais.
Os autores não podem ser punidos pela negligência do mercado de arte com a triste tradição da desconformidade com as normas regulatórias e fiscais. Isso é ainda mais evidente quando se trata de um acervo que sabidamente se valia de meios escusos para sua formação.
Hoje, as propostas de regulação do mercado de arte, sob a prerrogativa de combater a lavagem de dinheiro e o tráfico ilícito de bens culturais e de possibilitar a aplicação efetiva do Direito de Sequência – institutos estes presentes no caso da massa falida do Banco Santos – evocam a sugestão de capacitar auditores fiscais da Receita Federal (INC 864/2019), criar uma área de perícia específica para arte na Polícia Federal (INC 863/2019), ou mesmo de registrar obrigatoriamente todas as obras de arte (PL 4516/2019).
Dentre as propostas acima, a criação de um selo universal para registro e identificação de obras de arte, associado ao uso estratégico da tecnologia para a intersecção de informações entre banco de dados internacionais – Object ID e Stolen Works of Art database da Interpol, por exemplo – e, ainda, por meio de inteligência artificial, pela identificação automática de padrões suspeitos, obrigações legais não cumpridas, quaisquer esbulhos possessórios, poderiam ser reportados quase que instantaneamente às autoridades responsáveis para comprovar a lisura dos processos e isolar no mercado aqueles que se valem do setor para o cometimento de qualquer tipo de ato ilícito.
Nesse sentido, diagnosticar a Provenance (proveniência) de uma obra de arte é mais que essencial para a aplicação do Direito de Sequência. A proveniência basicamente é a lista de transações de uma obra de arte, registro das passagens de um detentor para outro, rastreando-a até o proprietário original, o artista (autor). Assim, contas de galeria, registros de exibição, registros de leilão, etiquetas de envio ou selos de revendedor são usados para rastrear a origem da obra de arte até seu criador e prover a efetividade do Direito de Sequência, mas e se não for possível identificar essa “mais-valia” prevista na Lei de Direitos Autorais?
A proveniência regular, portanto, traz certas desvantagens para a atribuição desse direito e recompensa econômica da venda de uma obra para o autor ou sua família. A tecnologia Blockchain, como a praticada pelas empresas Monegraph ou Verisart, é uma opção que oferece uma maneira superior de rastrear a obra de arte à medida que ela passa de um detentor para outro, contribuindo para uma due diligence positiva. Além disso, toda vez que um artista cria um novo trabalho de arte, ele pode protegê-lo com um token digital. Como em seu núcleo Blockchain é um livro razão distribuído, ele pode fornecer um registro inalterável de proveniência começando com autenticação, com o atual proprietário de uma obra de arte e terminando com o valor da “mais-valia” ou do valor de venda.
Talvez, se em 2005 da intervenção do BACEN da hoje massa falida Banco Santos S/A já houvesse o registro ou uma melhor fiscalização e uso de métodos mais eficientes no combate a lavagem de valores e ao tráfico ilícito de bens culturais, a constituição irregular e ilegal dos acervos da então instituição financeira, divididos entre o Instituto Cultural Banco Santos (ICBS), a Cid Collection e o acervo particular de Edemar Cid Ferreira, diretor da instituição na época, não teriam sido formadas.
O Direito de Sequência deve ser enxergado como um estímulo à criação. Fomentar a criação artística é um dever do Estado. Isso não é novidade, apesar da crise sem precedentes que o setor cultural vem passando. Mas o mercado de arte deveria ser solidário e compreender a garantia desse direito cultural como algo estratégico, pois é o maior beneficiário das novas criações que serão estimuladas a partir daí. Noutras palavras, não é compreender os 5% como uma tributação, mas como um investimento na base da cadeia produtiva das artes visuais: o autor.
A verdade é que a impossibilidade do exercício desse direito expõe a forma como os direitos autorais são tratados historicamente, desde a sua origem com os livreiros e impressores até os dias atuais com as plataformas de streaming. Os autores ficam relegados a um papel secundário; eles foram e sempre serão subjugados pelos intermediários que exploram economicamente a obra intelectual. Direito autoral, atualmente, não é sobre autores, mas sobre como tais intermediários podem lucrar com eles.
Mário Pragmácio
Professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional
Anauene D. Soares
Advogada, perita e restauradora de obras de arte. Autora da obra "Direito Internacional do Patrimônio Cultural: tráfico ilícito de bens culturais", disponível para download.
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