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Brasil e Itália em diálogo sobre o Patrimônio Cultural Imaterial (1)

Atualizado: 28 de jan. de 2021



Estamos vivendo em um mundo de rápidas mudanças, aceleradas por uma pandemia. Segundo Zygmunt Bauman (2), encontramo-nos na modernidade líquida, uma época em que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis. Na perspectiva de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (3), estamos em um mundo hipermoderno, permeado pela insegurança, desestabilizado e desorientado. O ser humano, hoje, testemunha uma cultura, na qual não existe fronteira para a circulação do capital e das multinacionais, reforçando o consumismo e penetrando quase a totalidade das atividades humanas. Há uma universalização da cultura mercantil, que se apodera das esferas da vida social e se espalha por todo o globo.


Ainda que estejamos em um cenário com tendências a enfatizar o utilitarismo, os saberes e os conhecimentos produzidos e acumulados ao longo das gerações encontram formas de se opor às tendências homogeneizadoras. Nuccio Ordine (4) se refere ao saber como um obstáculo ao delírio da onipotência do dinheiro, pois o saber não se pode comprar, não é algo que se pode adquirir mecanicamente, pertence exclusivamente ao esforço individual, oriundo de uma paixão que não se esgota. Nessa esteira, espaços são constituídos para pensar a cultura, nos quais comunidades acadêmicas se reúnem e produzem conhecimento para crítica e reflexão. Concomitantemente, aqueles que fazem a cultura, os articuladores de saberes e fazeres, imersos nesse processo de mudanças, cada vez mais assumem o protagonismo das transformações, não determinando o que será alterado, mas fazendo parte desse diálogo que constrói uma nova realidade.


Entre esses espaços, concebidos para pensar a cultura, seus direitos e suas políticas, está o Encontro Internacional de Direitos Culturais – EIDC, que, desde 2012, reúne pesquisadoras e pesquisadores de vários lugares do Brasil e também de outros países. Em uma de suas edições, precisamente na sexta, no ano de 2017, aconteceu uma aproximação entre participantes do Brasil e da Itália, que deu vazão a um intercâmbio acadêmico. Um dos frutos desse percurso dialogado é o livro “Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: uma análise comparativa entre Brasil e Itália” (EDUFBA, 2020).


A publicação foi organizada pelos professores Humberto Cunha e Tullio Scovazzi, ambos pesquisadores destacados no campo dos direitos culturais. A obra é a apresentação do resultado de um acordo de colaboração entre a Universidade de Fortaleza e a Università di Milano-Bicocca, para produzir uma pesquisa sobre a proteção do Patrimônio Cultural Imaterial – PCI. Juntam-se aos trabalhos dos organizadores, produções de Anita Mattes, Benedetta Ubertazzi, Mário Pragmácio, Pier Luigi Petrillo e Rodrigo Vieira Costa, pesquisadoras e pesquisadores que desenvolvem produções acadêmicas atinentes aos direitos culturais, destacando-se nas pesquisas sobre PCI.


Humberto Cunha, Mário Pragmácio e Rodrigo Vieira Costa, professores de universidades brasileiras, formam o trio fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza – GEPDC/UNIFOR, grupo que surgiu em 2004, por iniciativa estudantil de vanguarda. Os pesquisadores também são fundadores do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult, do qual também faz parte Anita Mattes, especializada em Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural. Tullio Scovazzi, Benedetta Ubertazzi e Pier Luigi Petrillo desenvolveram trabalhos de consultoria para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, além de atuantes em universidades europeias.


A obra é divdida em duas partes, a primeira intitulada “Uma visão comparativa da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial”, traz textos dos organizadores, nos quais é apresentada a normatividade comum aos dois países. O primeiro capítulo, de Tullio Scovazzi, cujo título é “Gli aspetti principali della Convenzione sulla salvaguardia del patrimonio culturale intangibile”, trata de aspectos fundamentais da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, a partir da análise de seu texto, contextualizando com exemplos de expressões culturais pelo mundo. A Convenção, uma iniciativa da UNESCO, com mais de 100 países signatários, entre eles Brasil e Itália, ampliou o sentido de PCI que ultrapassa as obras individuais, albergando as expressões coletivas.


O segundo capítulo, intitulado “Como Brasil/Ceará e Itália/Lombardia salvaguardam o patrimônio cultural imaterial”, é de autoria de Humberto Cunha. Inicia apontando elementos comuns do PCI, a partir da Convenção, tais como as responsabilidades estatais. Segue discorrendo sobre os lastros constitucionais da proteção do PCI, no contexto dos dois países. Depois, adentra nas legislações nacionais para a Salvaguarda do PCI, abordando o decreto do registro, no Brasil, e o código de bens culturais e da paisagem, na Itália. Por fim, aborda as legislações subnacionais para a Salvaguarda do PCI, no estado do Ceará, com as leis do registro e dos tesouros humanos vivos, e na região da Lombardia, com a lei das políticas regionais em matéria cultural.


A segunda parte do livro, intitulada “Os aspectos da proteção do patrimônio cultural imaterial no Brasil e na Itália”, trata das peculiaridades dos dois cenários nacionais. O primeiro artigo é de Rodrigo Vieira Costa, que traz o capítulo “História da proteção do patrimônio cultural brasileiro: o lugar do imaterial”, no qual realiza uma análise documental de fontes pertinentes à história da proteção do patrimônio cultural, encadeando evidências sobre como foi pensada a salvaguarda do PCI. Apresenta os primeiros projetos de lei sobre bens culturais materiais, além da tentativa de inclusão da cultura popular na política de preservação. Traça, ainda, um histórico de ausências do imaterial; registra o papel de figuras como Mário de Andrade e Aloísio Magalhães; e segue, discorrendo sobre a Carta de Fortaleza de 1997 e a elaboração do Decreto n° 3.551/2000.


O quarto capítulo, escrito por Anita Mattes, é intitulado “Breves considerações sobre a incerta proteção do patrimônio cultural imaterial pelo direito do autor brasileiro”, aborda as justificativas legais, culturais, sociais e econômicas para a proteção do PCI e aponta as dificuldades da aplicação das prerrogativas do direito autoral ao PCI. É nítida sua preocupação com os impactos da globalização, contexto no qual a exploração da cultura tradicional passou a figurar como uma mercadoria de consumo, necessitando de uma discussão que permeie o campo das políticas culturais e do direito.


O quinto capítulo, de Mário Pragmácio, intitulado “Copa do Mundo de Futebol (2014) e Olimpíadas (2016): o que fizeram com o patrimônio cultural imaterial do Rio de Janeiro – Brasil”, indica a importância de estudos que proporcionem uma interlocução entre Direito e Urbanismo, no intuito de analisar o impacto das políticas de PCI na cidade. Numa perspectiva crítica, narra como o PCI vem sendo tratado como um objeto a ser modelado para atender às demandas proporcionadas pelos eventos, sendo retrabalhado e incorporado como um ativo no modelo de cidade concebido para aquele momento. Desenvolve o texto em tópicos como a estandartização da cidade do Rio de Janeiro e o empreendedorismo urbano; a neutralização da potência contestadora do PCI carioca e o processo de apagamento da memória coletiva; e por fim, traz o caso-referência da Chapelaria Porto para ilustrar esse processo de apagamento.


Em relação aos estudos sobre a realidade italiana, Pier Luigi Petrillo traz, no sexto capítulo, o texto “The legal protection of intangible cultural heritage in Italy”. Apresenta a proteção legal do PCI italiano em nível nacional e regional, apontando instrumentos de proteção, tal como o Inventário Nacional. Aborda com profundidade não apenas os aspectos jurídicos, mas também questões políticas atinentes à identidade. A realidade proporcionada pela globalização também aparece como preocupação, frente à ameaça às comunidades tradicionais. Por fim, destaca o uso de instrumentos legais internacionais que proporcionem a proteção global da diversidade biocultural.


Benedetta Ubertazzi é autora do capítulo sete, intitulado “Italian intangible cultural heritage inscribed on representative list of the intangible cultural heritage of humanity: intellectual property rights as safeguarding measures”, no qual aborda, a partir do PCI italiano inscrito na Lista Representativa do Patrimônio Cultural da Humanidade, os direitos de propriedade intelectual como medidas de salvaguarda. Para isso, inicia falando das comunidades detentoras desses bens para, em seguida, abordar esses direitos como uma salvaguarda do PCI. Aponta nove bens italianos inscritos nessa Lista, três deles são multinacionais, ou seja, a Itália os compartilha com outros países, como é o exemplo da famosa dieta mediterrânea, também vinculada à Espanha, à Grécia, ao Marrocos, a Portugal, ao Chipre e à Croácia.


Tullio Scovazzi finaliza com “Brevi considerazioni sulla tutela del patrimonio culturale intangibile a livello costituzionale in Brasile e in Italia”, apresentando breves considerações sobre a tutela do patrimônio cultural intangível em nível constitucional no Brasil e na Itália, numa análise comparada, que chamam atenção para as sutilezas diferenciadoras da ação protetiva em um Estado federal como o Brasil para um estado de organização regional como é a Itália.


A relação entre Brasil e Itália pode ser referenciada de diversas formas, por meio do sistema jurídico, pela religião, gastronomia, tronco linguístico entre outros pontos em comum. As autoras e os autores participantes dessa produção acadêmica contribuíram, a partir de suas experiências, para despertar a reflexão que transbordam o universo acadêmico, penetrando o universo do saber-fazer cultural, a partir dos exemplos trazidos à baila. Assim, a leitura pode ser indicada para técnicos, estudiosos ou articuladores dos bens culturais.


Para Nuccio Ordine (5), os próximos anos - que aparentam ter sido antecipados - convocam para luta contra essa deriva utilitarista lançada sobre o que chamamos de cultura. Estamos diante de uma ordem que se constitui numa tentativa de sabotar o futuro da humanidade, com a dissolução programada do ensino, da pesquisa científica e dos bens culturais. Nesse contexto de incertezas, é preciso ousar pensar, como um ato subversivo, que estabelece um diálogo com o mundo, que busca reconhecer no outro a possibilidade de transformação, amenizando a aceleração causada pela hipermodernidade.


Sem xenofobia e com a consciência transfronteiriça de muitas manifestações culturais, é destacada a preocupação do grupo com os impactos causados pela globalização, no contexto dos dois países. As identidades são comprometidas pelo avanço do pensamento homogeneizador que transforma as relações humanas em mercadoria para o consumo das massas, sem fronteiras. O PCI é incorporado à lógica do mercado, sendo modificado mediante as demandas do tempo e espaço nos quais se localizam. Em outro giro, também é possível perceber que elementos são mantidos e cancelados, no desenvolvimento das manifestações culturais, trazendo a resistência como elemento essencial, como no caso das expressões de matriz afro-brasileira e de certas tradições italianas. Nessa perspectiva, o PCI subverte a ordem dada pelo capital.


O conjunto de textos aprofunda a perspectiva de documentos internacionais, sobretudo a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, da UNESCO, e sua aplicação em relação a contextos diferentes. São notórias, ainda, as diferenças e aproximações entre as duas realidades, sendo possível pensar na diversidade local e nas políticas encetadas para tratar o PCI, em cada caso. Colabora também para alargar a compreensão do PCI, o que fomenta a reflexão sobre diversos temas, entre eles, a tolerância à diversidade, o respeito às diferenças e aos povos subalternizados, a participação popular e a possibilidade de diálogo com a comunidade, a luta por direitos, a cultura como uma expressão de resistência contra a colonialidade, a dinamicidade do patrimônio e da cultura. As discussões transcendem os direitos, apresentando um debate para além das estruturas e lógica de Estado.


O pdf do livro objeto desta resenha pode ser baixado gratuitamente no site www.direitosculturais.com.br



José Olímpio Ferreira Neto

Mestre de Capoeira. Professor da Educação Básica. Advogado. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino e Formação Docente em associação Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro- Brasileira (UNILAB) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza – GEPDC/UNIFOR. Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult.


(1) O presente texto apresenta e discute brevemente o livro: CUNHA FILHO, Francisco Humberto; SCOVAZZI, Tullio (orgs.). Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: uma análise comparativa entre Brasil e Itália. Salvador: EDUFBA, 2020.


(2) BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001


(3) LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


(4) ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.


(5) Idem.



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