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Colocando o Marco Regulatório do Fomento à Cultura no seu devido lugar 



Nunca se viu tantos recursos financeiros destinados às políticas públicas de cultura estaduais e municipais como nos últimos quatro anos, advindos principalmente da Lei Aldir Blanc (LAB), da Lei Paulo Gustavo (LPG) e da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB).


Como bem apontou Cecilia Rabêlo no texto “Adeus, Lei de Licitações. Olá Marco Regulatório do Fomento à Cultura!”, o problema imediato da gestão pública de cultura passou a ser outro: como executar tais recursos de forma ágil e segura, considerando a singularidade das políticas culturais?


O setor cultural que historicamente padecia de uma escassez de dinheiro ou de uma hiper dependência do fomento indireto, quando existente, vive um raro momento em que não precisa se preocupar tanto com isso. Pelo menos não nos próximos cinco anos, quando finalizam os investimentos da PNAB. O problema imediato da gestão pública de cultura passou a ser outro: como executar tais recursos de forma ágil e segura, considerando a singularidade das políticas culturais? 


Há duas décadas os especialistas na matéria vêm alertando para o descompasso entre o Direito Administrativo tradicional e o Direito da Cultura, como se falassem línguas distintas, sem qualquer conexão. Enquanto o Direito Administrativo clássico estava preparado para “comprar cimento e construir ponte”, as assessorias jurídicas de Direito da Cultura pelejavam para executar as mais singelas ações de fomento à cultura, sobretudo em razão da falta de instrumentos básicos que fossem compatíveis com o setor.


Noutras palavras, é possível afirmar que o Direito Administrativo, em suas premissas fundadoras, não foi concebido para viabilizar o pleno exercício dos direitos culturais, como prescreve o art. 215 da Constituição Federal de 1988. 


Para agravar essa constatação, instituiu-se nos corredores das fundações ou secretarias de cultura o que Rodrigo Valgas chama de “Direito Administrativo do Medo”, ou seja, uma distorção deletéria do papel do controle acrescido de um amontoado de obstáculos burocráticos que criam um ambiente insalubre e persecutório para a gestão pública de cultura. Quem é ordenador de despesa sabe o que isso significa.  


É necessário, portanto, afastar esse modelo imposto ao setor cultural, o que não significa dizer que haverá uma blindagem em relação aos órgãos de controle ou qualquer proposta de abolir o dever cultural da prestação de contas (parágrafo único do art. 70 da CF/88). Não é isso o que se defende. É muito mais uma questão epistemológica do que procedimental. Diante desse cenário, emerge uma subárea do Direito da Cultura, que tem a pretensão de propiciar um tratamento adequado ao mandamento constitucional mencionado anteriormente, qual seja, o Direito Administrativo da Cultura.  


Ao longo dos anos, a gestão pública de cultura, que se valia de instrumentos jurídicos pinçados em diversos marcos legais – a exemplo do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), da Lei Cultura Viva ou mesmo da Lei de Licitações – agora dá um grande passo para construir bases sólidas de uma nova visão do Estado para fomentar as ações culturais. 


No dia 27 de junho de 2024, entrou em vigor a Lei 14.903, que estabelece o Marco Regulatório do Fomento à Cultura, no âmbito da Administração Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. O Marco Regulatório do Fomento à Cultura, nas palavras de uma das suas redatoras, Clarice Calixto, tem a pretensão de ser uma espécie de “caixa de ferramentas”, superando a premissa da desconfiança que embasa, por exemplo, a famosa e temida Lei de Licitações e Contratos Administrativos (antes conhecida como Lei 8666; agora Lei 14.133). 


Uma prévia do escopo dessa lei já tinha saído em formato de Decreto Presidencial, em março de 2023. O Decreto do Fomento, como ficou conhecido o DP nº 11.453/2023, tratava não só do fomento direto, mas também do fomento indireto, especialmente de Rouanet. Apesar de ser um Decreto, ele foi oportuno, pois viabilizou a execução de recursos federais por Estados e Municípios enquanto tramitava o Projeto de Lei do Marco Regulatório no Congresso Nacional. 


Porém, isso gerou uma certa confusão sobre a aplicabilidade imediata do Marco Regulatório (de 2024) ou do Decreto do Fomento (de 2023), o que deverá ser corrigido ainda esse ano. O Ministério da Cultura já acenou para a possibilidade de um novo Decreto do Fomento (versão 2.0) – possivelmente tratando apenas sobre o fomento direto – no intuito de ser, definitivamente, um decreto regulamentador do Marco Regulatório do Fomento à Cultura, criando, assim, um documento único que orientará o fomento cultural no país.  


Mesmo o Marco Regulatório sendo uma lei bastante procedimental e autoaplicável, esse movimento normativo da criação de mais um decreto é válido para desatar esse nó na pirâmide de Kelsen, que organiza a hierarquia das normas jurídicas. Serve para alinhar o Marco Regulatório (que é de junho de 2024) com um Decreto posterior que vai detalhar alguns pontos que ficaram para trás e limpar o que estiver sobrando.      


Por fim, vale relembrar: o Direito Administrativo da Cultura não se faz apenas com a criação de novos marcos legais, mas através de um giro na percepção do verdadeiro papel do Direito Administrativo para a consecução das políticas culturais, visando ao pleno exercício dos direitos culturais. Isso leva tempo, mas é extremamente importante para reposicionar o fomento no seu devido lugar. 

 

Mário Pragmácio, Professor do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense e articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais 

 

 

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