“É somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento.”
Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas
A incompreensão acerca do funcionamento da Lei nº 8.313/91, a famosa – e desconhecida – lei Rouanet, gera um imenso abismo entre o que é concretizado a partir dessa norma, que é a principal lei de fomento à cultura do país, e o que a sociedade e o próprio Poder Público entendem sobre ela.
Para se ter uma ideia da verdadeira “omissão” de informação sobre a Rouanet e seu funcionamento, cito dois casos.
O primeiro deles é a tentativa pífia do governo federal de agradar seus eleitores, que costumam criminalizar a produção cultural realizada a partir da Rouanet, ao não mais utilizar a alcunha famosa (Rouanet), trocando-a pelo termo “lei federal de incentivo à cultura”, estampando em seu site oficial o slogan “chegou a nova lei de incentivo à cultura” para dar um ar de novidade à política cultural do país.
O problema não é utilizar o termo “lei federal de incentivo à cultura” (de fato, ela é uma lei federal cujo objetivo é incentivar a cultura, apesar de não ser a única do tipo), mas afirmar que ela é “nova” é, no mínimo, omissivo, para não dizer coisa pior, pois não houve qualquer alteração no texto da norma, e nem em seu Decreto, desde que o atual governo assumiu o poder.
O que houve, na verdade, foi uma alteração em seu regulamento. Em 23 de abril de 2019, foi publicada a Instrução normativa nº 02, que trouxe poucas e pontuais mudanças no procedimento de seleção e execução dos projetos, tais como a redução de valor máximo por projeto e o estabelecimento do teto máximo de 200 mil reais para proponentes iniciantes.
É óbvio, ao menos no âmbito jurídico, que não dá para esperar grandes mudanças advindas de uma IN quando há uma lei e um Decreto acima dela, definindo as regras do jogo. No entanto, para o público em geral, que desconhece tais regras, o slogan estampado no site governamental induz ao erro de que houve alguma alteração na lei Rouanet com o intuito de “moralizá-la”, de adequá-la aos desejos eleitoreiros quando, na verdade, ela continua a mesma (com os mesmos problemas de sempre).
Esse é apenas um exemplo de como a lei Rouanet (sim, sigo, por birra, utilizando a nomenclatura popularizada) é desconhecida pela sociedade em geral, que, em contraposição, se beneficia diretamente de projetos artísticos e culturais que somente ocorrem em virtude do incentivo fiscal permitido pela norma.
Na mesma linha de incompreensão geral acerca da Rouanet, a Receita Federal do Brasil vem autuando diversas produtoras culturais para que façam o recolhimento de tributos em relação ao valor captado via incentivo fiscal.
De acordo com a Receita, o recurso captado pelas produtoras culturais via lei de incentivo fiscal, seria considerado rendimento e faturamento, incidindo, portanto, Imposto de renda, CSLL, PIS e COFINS. Fundado nesse entendimento, o órgão federal vem cobrando tais valores, com multas pelo “atraso” no pagamento, ensejando processos judiciais por todo o país questionando tais exações.
A falta de compreensão do caráter público dos valores recebidos via incentivo fiscal, atributo este confirmado pelo própria IN nº 02, em seu art. 1º, §6º, leva o mesmo ente federado (União) a, de um lado, conceder um benefício fiscal e, de outro, punir o beneficiado por utilizá-lo (de forma legal e sem qualquer irregularidade), impondo tributações que carecem de fundamentação jurídica (o que explica as derrotas judiciais arcadas pela União).
São duas situações bem diferentes. Na primeira, o governo se utiliza de um artifício para, literalmente, induzir as pessoas a acreditarem que, “sim, agora tudo mudou”. Na segunda, o órgão federal desconsidera a própria natureza da lei nº 8.313/91 e dos recursos que ela gerencia para tributar proponentes que se valeram do incentivo fiscal por meio de projetos que, pasmem, tiveram sua prestação de contas aprovada por esse mesmo ente.
No entanto, apesar de distintas, ambas demonstram quão incompreendido é o incentivo fiscal via Lei Rouanet, tanto pela sociedade quanto pelo Poder Público. A questão que fica é: essa incompreensão é proposital? A quem interessa o desconhecimento geral acerca da norma mais importante de fomento à cultura do país?
Conhecimento é poder. E o manejo dele é o melhor instrumento de controle.
Cecilia Rabêlo
Advogada na área de Economia Criativa, Mestre em Direito, Especialista em Gestão e Política Cultural.
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