Existe uma falsa impressão de que política cultural só seria prioridade em uma democracia. Governos autoritários também defendem a cultura e nela investem. Destaca-se, no Brasil, o período militar de 1964 que garantiu significativos investimentos. Então, afinal, por que parte considerável dos movimentos culturais insistem na democracia? O objetivo deste artigo é destacar a relação intrínseca entre os direitos culturais e a democracia.
Para melhor analisar esta questão apresentamos uma breve análise das políticas culturais no regime militar de 1964. Neste período, elas foram marcadas por vultosos incentivos estatais e pelo estímulo ao aumento do consumo de bens culturais. Foram criados até mesmo conselhos de políticas culturais [1] que atestam a sua importância [2].
A questão central, ao destacarmos este ponto, é analisarmos qual a compreensão de cultura que subjaz a esse tipo de investimento e por que ela ocupa um papel estratégico para governos autoritários. Tratava-se, na ocasião, de estabelecer, incentivar e padronizar “uma cultura nacional única” [3], que representasse a imagem ideal que seus governantes tinham como ideologia.
Para tanto, a estratégia estava voltada a eliminar toda forma de diversidade, inibir todas as manifestações culturais, suprimir pluralidades para unir, via símbolos pátrios (hino, bandeira, insígnias, entre outros), todos os brasileiros e brasileiras pelas mesmas cores, dança, sons, linguagens e movimentos. Com esse propósito, extinguia-se a crítica, a diversidade, a alteridade.
Na verdade, a contradição não existe. Trata-se de uma chave que gira para os dois lados: ambiguamente impede um tipo de orientação, a de conteúdo ideológico de esquerda, promovendo uma espécie de "higienização", que interessava à ideologia da segurança nacional, mas incentiva outro, aquele que prega Pátria, Deus, moral e bons costumes [4].
O período de 1964 é marcado pela censura de conteúdos críticos e/ou reflexivos, aliado a vultosos investimentos em infraestrutura, inclusive de radiodifusão e telecomunicações que permitiriam o fortalecimento de uma indústria cultural nacional [5]. Ou seja, uma produção prevista para ser massificada, padronizada, impessoal, acrítica e de “fácil consumo para o grande público”.
Pode-se dizer que havia um “dirigismo cultural”, comum em governos autoritários que consistia no investimento em uma concepção de nação única de valores historicamente compartilhados, alinhada a um pensamento colonizado e muito distante da multiculturalidade constitutiva do país. As manifestações que destoassem eram censuradas ou não recebiam aportes em termos de investimentos.
O dirigismo cultural realizado pelos militares, somado ao investimento na comunicação de massa, à época, promoveram a substituição de uma produção artística diversificada e artesanal por bens de consumo desta indústria cultural emergente no país, nacionalmente desenhada.
É, pois, “em nome dessa unicidade que os militares pautarão as estratégias de planejamento para a cultura, em busca de uma síntese e modelo de uma identidade cultural nacional” [6]. Nesse projeto, a censura torna-se um eixo que expurga qualquer pensamento divergente, qualificando-o como “antipatriota”, “esquerdista”, entre outros. Não constituem, portanto, um fenômeno novo os discursos atuais de governos que não compreendem o mandamunus constitucional referente à diversidade.
Aliás, tal ideia é, ainda, mais antiga, e já estava presente desde o século XV no escopo “do processo civilizatório” [7], no propósito de instruir os “aculturados”. Por esta razão cultura e civilização muitas vezes têm sido utilizadas como sinônimos, recorrendo à premissa falaciosa de que os “cultos” precisam “civilizar” os “incultos”. Assim, nega-se o reconhecimento da sua alteridade, ou seja, a condição de sujeitos sociais que os constituem, com visões de mundo e experiências culturais plurais. Mais grave ainda, políticas culturais, guiadas por essas premissas, afrontam o princípio fundamental de que a cultura é um traço inerentemente humano.
A soberba advinda, assim, de um suposto domínio da verdade, bastante questionável, como sinalizado há pouco, nos leva à incapacidade de aprender. E é justamente neste ponto que se inicia uma convergência intrínseca entre a democracia e os direitos culturais. Estes, contêm em sua essência o fluxo de saberes [8] que consiste justamente no intercâmbio de formas de “ser, viver e criar” [9].
A democracia é constituída pelos conflitos e confluências de interesses e saberes e a supressão de liberdade de manifestação representa de per si o fim da democracia. É neste ponto que o dever do Estado de incentivar as diversas formas de manifestações culturais encontra a sua indissociável relação com o princípio da pluralidade cultural. Trata-se, pois, de um dever do Estado o fomento a todas estas manifestações e não determinar ‘uma única’ cultura nacional [10].
A democracia necessita para sua existência que as pessoas possam manifestar-se, expressar-se, atuando em suas formas mais diversas e plurais. É por isso que a Constituição estabelece que é princípio da política nacional de cultura o reconhecimento da “I - diversidade das expressões culturais; (Art. 216-A CRFB/88). Nestes termos, atesta que cultura não é um padrão pré-determinado ou imposto pelo Estado. Pelo contrário, neste campo, quanto menos o Estado intervir “no mérito”, no conteúdo artístico, mais próximo estará da democracia. Cabe ao Estado fomentar, incentivar, circular, especialmente, aquelas manifestações que têm menos condições ou menos visibilidade [11].
Tal fato é tão constitutivo da essência dos direitos culturais que a execução e o pensar a política cultural deve ser realizado em parceria com a sociedade civil, em conjunto com os agentes culturais e trabalhadores da cultura. Os processos decisórios precisam impreterivelmente se dar por meio da participação [12], afinal, não pode jamais o Estado determinar o expressar-se da sociedade, a cultura (e efetivação de direitos culturais) não é questão de gosto, preferência, ideologia ou paixão, mas de incentivar a diversidade, as pluralidades e reconhecer o direito inerente à cultura de cada cidadão /cidadã brasileiro (a).
André Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor, professor de Direito e diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Inês Vitorino, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1999), com Doutorado Sanduíche na Westfälische Wilhelms Universität Münster e estágio Pós-Doutoral na Université du Québec à Montréal, UQÀM. É professora titular na área de Comunicação da Universidade Federal do Ceará e vice-coordenadora do Laboratório de Pesquisa da Relação Infãncia, Juventude e Mídia (LABGRIM). É, também, Professora Associada ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard. E-mail: inesvict@gmail.com
Notas
[1] Conselho Federal de Cultura era composto por 26 membros nomeados pelo Presidente da República e substituiu o Conselho Nacional de Cultura.
[2] PAIVA, Lívia de Meira Lima. CULTURA E DITADURA: PERMANÊNCIAS AUTORITÁRIAS NAS POLÍTICAS CULTURAIS CULTURE ET DICTATURE: DES CONTINUITÉS AUTORITAIRES DANS LES POLITIQUES CULTURELLES.
[3] ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira – cultura brasileira e industria cultural. São Paulo, 2001.
[4] PELLEGRINI, Tânia. Relíquias da casa velha: literatura e ditadura militar, 50 anos depois, in: estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 43, p. 151-178, jan./jun. 2014.
[5] Sobre o conceito de Indústria Cultural ver a contribuição dos pensadores da Escola de Frankfurt em ADORNO e HORKHEIMER, Indústria Cultural e sociedade. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
[6] PAIVA, Lívia de Meira Lima. CULTURA E DITADURA: PERMANÊNCIAS AUTORITÁRIAS NAS POLÍTICAS CULTURAIS CULTURE ET DICTATURE: DES CONTINUITÉS AUTORITAIRES DANS LES POLITIQUES CULTURELLES.
[7] ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Jorge Zahar Editor, 1993.
[8] Direitos Culturais são aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao fluxo de saberes, que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana. (CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Os direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2000)
[9] Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...]
II - os modos de criar, fazer e viver;
[10] CUNHA, Humberto. Cultura e democracia na Constituição Federal de 1988: representação de interesses e sua aplicação ao Programa Nacional de Apoio à Cultura, 2004;
[11] Ademais, é preciso refletir quais áreas da cultura devem ser fomentadas? Será que a prioridade deve ser para artistas consagrados e aos quais os cidadãos tem acesso pela própria exposição do mercado? Já destaquei neste espaço, em outra coluna, sobre a característica do Pluralismo Cultural, princípio que “consiste em que todas as manifestações da Cultura brasileira têm a mesma hierarquia e status de dignidade perante o Estado”(CUNHA, pág. 64; 2004). Ora, tendo a mesma hierarquia então é preciso garantir, por meio de políticas públicas, que todos tenham acesso às diferentes manifestações culturais e pra isso precisam ser fomentadas aquelas aos quais os cidadãos não conseguem acessar. Isto, pois, as que já são alcançadas ‘naturalmente’ pelo mercado prescindem do Estado, enquanto outras áreas necessitam deste para impulsionar ou para seguir o seu repasse de saberes. (BRAYNER, A. Shows Públicos pagos por prefeituras ou pela Lei Rouanet? . Blog do IBDCult. 2022);
[12] CRFB/88. Art.216-A, X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social.
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