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Cultura: normatividade líquida? 


Artesanato mexicano – foto do articulista

 

Zygmunt Bauman explorou os standards líquidos em obras como ‘Modernidade Líquida’, ‘Amor Líquido’, ‘Tempos Líquidos’, ‘Vigilância Líquida’, ‘Vida Líquida’, enfim... tudo aquilo que Paul Valery sintetiza na epígrafe prefacial do primeiro dos livros mencionados, ao notar que “Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas se tornaram mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas … por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados…Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos[1]


A modernidade nos preparou para a liquidez que hoje vivenciamos. Especificamente no campo do Direito, que é o meu universo de reflexão e produção acadêmica, algumas providências fincaram as bases para o assentamento das colunas desse novo momento, destacando-se a substituição de preceitos baseados em tradições imemoriais ou livros sagrados pelas de produção de normas a partir da política; também passou-se a adotar o critério cronológico (a lei mais nova vale sobre a mais antiga) como a regra geral para determinar a vigência do direito, elementos que nos lembram, respectivamente, a falibilidade e a inconstância das coisas humanas. 


Essas fragilidades se mostraram tão ameaçadoras que alguns antídotos foram tentados, como a construção de cláusulas jurídicas pétreas (assuntos fora do jogo político), bem como a adoção dos princípios como a principal fonte da legislação. De fato, diante da força da política, são apenas cortinas de fumaça, pois a simples mudança interpretativa tem o potencial de os comutar em letra morta. 


Malgrado o tom algo dilemático (posto que há mudanças boas, mas muitos resultados ruins), constata-se a existência de normas que se estendem no tempo, funcionando como faróis e até porto seguro para quem, sem elas, poderia estar à deriva. Um dos exemplos mais eloquentes pode ser extraído do parágrafo de abertura da vigente Constituição do país onde ocorreu a mais famosa das revoluções, precisamente aquela que é o marco inaugural da modernidade, segundo o qual “o povo francês proclama solenemente o seu apego aos direitos humanos e aos princípios da soberania nacional definidos pela Declaração de 1789, confirmada e complementada pelo preâmbulo da Constituição de 1946, bem como aos direitos e deveres definidos na Carta Ambiental de 2004[2]


Neste exemplo, a França reverencia a sua história, conservando sua declaração original, mesmo que, com o passar do tempo, nela reconheça a existência de defeitos e desatualizações que são sanados em documentos próprios; oferece, assim, um roteiro histórico da evolução da sua normatividade, possibilitando que se saiba a origem, a contemporaneidade e até mesmo as bases do porvir. 


Esse quadro da liquidez contemporânea, contrastado com o exemplo francês, me fez pensar em dois documentos com propostas internacionais relativas aos direitos culturais, que muito admiro e com os quais passei a ter mais contato em virtude das minhas atividades neste setor: a Carta Cultural Ibero-Americana (2006) [3] e a Declaração de Friburgo (2007) [4]


Para ambos os documentos, que contam com menos de 20 anos de existência, seus idealizadores e os grupos por eles liderados cogitam e debatem atualizações, com o argumento comum do surgimento de novidades na cena social, econômica, cultural e ambiental, que precisam ser incorporados ao texto originário. 


De fato, a situação tem algo de delicado, pois o curto lapso temporal não permite que se distinga com nitidez se muitas das coisas às quais se atribui o selo de novidade é, verdadeiramente, apenas um modismo passageiro que, por sua força midiática, nos leva a aderir aos comportamentos líquidos denunciados por Bauman. 


Não sou infenso e nem contrário às mudanças verdadeiramente necessárias, mas a riqueza de documentos como a Carta Cultural Ibero-Americana e a Declaração de Friburgo merecem mais tempo para serem experimentadas. Se alterações forem evidenciadas como imperiosas, pode-se seguir o caminho já trilhado pelo preâmbulo da vigente constituição francesa. 

 

Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP) 

 

Notas:  


[1] In: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, Tradução: Plínio Dentzien. São Paulo: Zahar, s/d. 




[4] Afirmar os direitos culturais: comentário à declaração de Friburg / organização Patrice, Meyer-Bisch, Mylène Bidault; tradução Ana Goldberg; Taïeb Baccouche; Marco Borghi; Joanna Bourke-Martignoni; Claude Dalbera; Emmanuel Decaux; Yvonne Donders; Alfred Fernandez; Pierre Imbert; Jean-Bernard Marie. - 1. ed. - São Paulo: Iluminuras, 2014. 

 

 

 

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