Em época de eleições, os brasileiros, em geral, costumam se ressentir diante da falta de propostas dos candidatos, do excesso da retórica contumaz nas disputas dos pleitos – para não falar do jogo político “verdade ou mentira”, muito em voga na era da desinformação – ou do acirramento de ânimos e afetos na defesa obstinada das candidaturas. Não é que as plataformas políticas não existam, mas, quando o extremismo e a violência ganham contornos antes inimagináveis, acabam por sombrear o relevo da discussão das ideias e programas centrais das candidaturas para unir um país deveras dividido.
Há certos momentos das campanhas em que os candidatos se descolam de suas propostas para agradar parcelas do eleitorado, assim como também há proposições registradas na Justiça Eleitoral meramente por obrigação figurativa, sem apresentar nenhum grau ínfimo de vinculação do candidato com as suas exposições. Por certo que o terreno político é cheio de sulcos, ou seja, nem toda proposta é promessa (realizável), pois depende de fatores complexos de conjuntura local, nacional ou internacional, alianças, recursos, adesão social, rupturas, entre outros. Entretanto, as propostas são pistas mínimas para cobranças e para contrastar o perfil programático das candidaturas entre o discurso e a realidade.
Nos pleitos eleitorais, o olhar político sobre a cultura é quase sempre algo secundário, quando não apresentado como um plus, uma vantagem adicional, a cereja do bolo, muito embora a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos a tenham dado um valor tonificado enquanto fator de desenvolvimento social e humano. Ao longo das duas últimas décadas, esse cenário se viu parcialmente alterado por nichos políticos que tentaram fazer da então cereja o próprio bolo.
A urgência das emergências culturais, durante e pós o cenário mais catastrófico da pandemia, chamou a atenção para essa gradação transformativa com aportes de recursos advindos das Leis Aldir Blanc 1 e 2 e da Lei Paulo Gustavo. Todavia, onde está hoje a cultura nas propostas de governo dos presidenciáveis? Existem proposições das candidaturas para os setores culturais? Quais são?
Nestas eleições de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) recebeu doze pedidos de registros de candidatura para corrida eleitoral à Presidência da República (Ciro Gomes – PDT; Felipe D’Ávila – Novo; Jair Bolsonaro – PL; Eymael – DC; Léo Péricles – UP; Lula – PT; Pablo Marçal – PROS; Roberto Jefferson – PTB; Simone Tebet – MDB; Sofia Manzano – PCB; Soraya Thronicke – UB; e Vera Lúcia Salgado – PSTU). Todos enviaram à Justiça Eleitoral as suas plataformas políticas. Somente uma delas não traz qualquer menção ou proposta voltado aos setores culturais, a da candidatura do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), cujo registro de candidato foi negado recentemente pelo TSE. A regra das análises político-eleitorais desse período é frequentemente centrar-se nas duas principais candidaturas que aparecem na frente das pesquisas, a do ex-presidente Lula (PT) e a do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (PL).
Porém, verificaremos, nesta primeira parte, o que pensam para as políticas culturais as demais candidaturas, sobre determinados tópicos, eventualmente pontuando aproximações e distanciamentos de suas propostas com esses dois programas. Ainda assim, no que se refere às diretrizes para um segundo mandato de Jair Bolsonaro, o documento apresentado ao TSE se assemelha mais a uma tentativa de prestação de contas do que supostamente fora realizado numa “política nacional de cultura” que, paradoxalmente, para quem contribuiu com um assédio institucional permanente aos setores culturais, ele promete ampliar e fortalecer.
A maior parte das plataformas dos candidatos à Presidência trabalha a partir de diretrizes ou linhas gerais para os setores culturais, avaliando ou não criticamente o desempenho do atual governo. Por vezes se utilizam da textura aberta de certas expressões para empregar significados distintos aos seus perfis políticos e orientações ideológicas. Outras vezes, nem isso, com amplitude e vagueza difíceis de apreender o que de fato está sendo proposto. Ainda que tragam o detalhamento específico de certas propostas, não explicitam de que forma vão realizá-las.
Cultura e Identidade Nacional
Em tempos de guerras culturais, há nas diretrizes gerais de programas políticos de alguns candidatos uma disputa clara do fortalecimento de uma identidade cultural nacional como apelo à unidade do país. Na aposta neodesenvolvimentista do candidato Ciro Gomes (PDT), o fortalecimento da cultura aparece atrelado à “autoestima de nosso povo em relação a sua história, tradições e hábitos sociais” [1]. No programa do pedetista, encontra-se uma forte invocação ao estímulo da cultura nacional, tanto via reconhecimento da diversidade regional brasileira, quanto das iniciativas criativas em vários setores culturais. Sobressai-se o aspecto econômico de investimento na “democratização do acesso, na fruição e na expansão do consumo de bens e serviços culturais”, na “inclusão social” e “na economia criativa” com foco em grupos em situação de vulnerabilidade e como fator de geração de empregos. Em suas propostas de políticas afirmativas para a população negra, há expressa menção de sua aplicação “no fomento oriundo da Lei Rouanet”. [2]
O discurso da associação entre cultura e identidade nacional também aparece genericamente no programa de Pablo Marçal (PROS) para quem “a identidade de um povo é perpetuada pelas memórias advindas de seu processo criativo, artístico e cultural” [3], e de Eymael (DC), que ressalta a parceria entre governo e iniciativa privada no “b) Fazer da cultura e da identidade nacional, vertentes da escolarização brasileira. c) Resgate e valorização da cultura e da identidade nacional.” [4]
Mais à esquerda, Léo Péricles (UP) defende o caráter popular da cultura nacional com a “nacionalização de todas as companhias gravadoras de música e produtoras de filmes” no intuito de promover “políticas específicas para a geração de renda em cadeias produtivas que envolvam bens e serviços culturais.” [5]
As demais candidaturas não estabelecem essa ponte entre cultura e identidade nacional de forma textualmente expressa. Algumas acentuam muito mais o aspecto da diversidade cultural, seja à esquerda ou à direita, como as candidaturas de Sofia Manzano (PCB), Lula (PT) ou Simone Tebet (MDB). No caso do programa do PCB, semelhante à Leo Péricles – UP, há uma forte crítica dirigida aos monopólios nacionais e internacionais das indústrias culturais e dos meios de comunicação, à mercantilização da cultura e ao sufocamento da cultura popular pela cultura de massas. Em sua defesa da classe trabalhadora, Sofia Manzano (PCB) propõe o “resgate da cultura popular” para “incentivo à criação de espaços culturais nos bairros, como forma de garantir o amplo acesso da população às artes e o surgimento de novos talentos culturais nas regiões populares” [6].
Esse viés está em parte na exortação da candidata Vera Lúcia (PSTU) de “todo apoio à criação cultural” contra a repressão do governo bolsonarista e a “estrutura cultural burguesa” [7]. A valorização da cultura popular e periférica é igualmente referida nos compromissos da candidatura de Lula (PT). À direita, Soraya Thronicke (UB), em dimensão sintética e genérica, muito diferente das candidaturas de esquerda, menciona nas ações que pretende “fortalecer as manifestações culturais típicas” [8].
Cultura e economia
Outra relação presente nos programas dos candidatos é entre cultura e economia, como já apontado nas diretrizes de Ciro Gomes (PDT) e nas propostas de Léo Péricles (UP) e Sofia Manzano (PCB), mas também nas plataformas de Felipe D’Ávila (NOVO), Soraya Thronicke (UB) e Lula (PT), muito embora partam de princípios e modelos econômicos distintos. Entretanto, a mobilização de dados numéricos sobre a representatividade da cultura no Produto Interno Bruto aparece com maior ênfase no programa de Soraya Thronicke (UB), que aponta dados relacionais entre investimento público na cultura e retorno, e os impactos financeiros nos setores culturais durante a pandemia.
Segundo ela, a Covid-19 ocasionou a paralisação de equipamentos culturais e afetou a ocupação laboral no setor. Para a candidatura da antiga aliada do atual presidente da República, a demora de atuação do governo federal “causou enormes prejuízos e desempregos significativos”. Assim como nas candidaturas de Felipe D’Ávila (NOVO) e de Simone Tebet (MDB), a candidata da UB apoia-se no potencial da cultura associado ao setor do Turismo. Para Lula (PT), o estímulo da indústria do Turismo como geradora de empregos passa pela valorização da cultura e do patrimônio histórico.
Além disso, entre as soluções para vencer a crise, apresentadas expressamente por ela e Simone Tebet (MDB), está a utilização das leis de incentivo (Rouanet e Audiovisual no segundo caso, mais explicitamente) e emergenciais à cultura (Aldir Blanc e Paulo Gustavo) como vetores de financiamento e fomento estratégicos. Ainda sobre financiamento da cultura, Eymael (DC) traz de forma abrangente que promoverá a “a) valorização da diversidade e da pluralidade no financiamento de atividades culturais” [9], tal e qual Pablo Marçal (PROS) que se compromete a “promover toda espécie de atividade artística e produção cultural que elevem os padrões de nossa cultura, principalmente dos iniciantes e pequenos artistas” [10], ambos sem detalhar que medidas adotarão para seus propósitos.
As propostas de Lula (PT) estão expressas em diretrizes que se aproximam de uma carta compromisso dirigida ao eleitorado brasileiro. A dimensão econômica da cultura, em dois pontos do documento, é destacada ao lado da cidadania, a cultura vista como direito e ferramenta de fortalecimento das instituições democráticas.
Economicamente, o primeiro candidato nas pesquisas defende a cultura como dimensão estratégica de reconstrução democrática do país e da retomada do desenvolvimento sustentável. Entende a “recomposição do financiamento e do investimento” como fator dinamizador da economia cultural. Para tanto, também se volta a “reestruturar a cadeia produtiva cultural, severamente prejudicada durante a pandemia e duramente perseguida pelo atual governo” [11], mas sem citar expressamente as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, apostando na defesa da implementação do Sistema Nacional de Cultura por meio de descentralização federativa de recursos. Ciro Gomes (PDT) menciona o reposicionamento do orçamento da cultura e o fortalecimento do papel regulatório da Ancine no mercado audiovisual.
Outro ponto frequentemente tratado como aspecto inovador no campo econômico da cultura por algumas candidaturas é o estabelecimento de algumas propostas específicas para o estímulo a projetos e programas no ambiente digital. O candidato Ciro Gomes (PDT) propõe que o streaming seja regulamentado no Brasil para dar maior visibilidade à produção cultural nacional e independente, além do apoio a start-ups digitais e criação de programa de financiamento para aquisição de celulares e de implantação de banda larga comunitária como meios de acesso à cultura.
Para a candidata Soraya Thronicke (UB), o socorro emergencial à cultura deve envolver os níveis federados na capacitação tecnológica dos profissionais da cultura e a “produção de aplicativos culturais de fácil acesso à população”. A digitalização integrada de acervos da Biblioteca Nacional e de outras instituições culturais é apresentada como meio de “universalizar o acesso à cultura”, assim como o fortalecimento do sistema de infraestrutura audiovisual e games para proporcionar acesso educativo a museus.
Léo Péricles – UP, em sua defesa da cultura nacional e popular, propõe a implementação de “uma indústria cinematográfica nacional e criação de provedores de conteúdo de domínio público e infraestrutura aberta, além de alternativas de redes sociais sob controle popular”. Por fim, Lula (PT) enfatiza que a estratégia econômica do país deve unir ciência, tecnologia, inovação, economia criativa e da cultura como elementos de aceleração da transição digital “em processos produtivos sofisticados com maior valor agregado”.
Em um ano eleitoral ainda marcado pela crise econômica gerada pela pandemia, a cultura como bolo está no forno batida com a economia, o turismo e a infraestrutura digital. O ingrediente da identidade nacional é um fermento que cresce o bolo em demasia para depois murchá-lo. Por outro lado, há receitas que até esqueceram da cereja, ou mesmo puseram em seu lugar bala de goma. Há outros pontos dos programas dos candidatos para serem destacados. Façamos a pausa para o café com bolo.
Rodrigo Vieira - Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa, Coordenador do Curso de Direito da mesma instituição e membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult
[1] https://static.poder360.com.br/2022/08/plano-ciro-tse compactado_1.pdf
[2] Ibidem
[3] https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-pablo-marcal-pros.pdf
[4] https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-eymael.pdf
[5]https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-leo-pericles.pdf
[6]https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/BR/544/candidatos/890829/programa.pdf
[7]https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/BR/544/candidatos/898012/5_1659739349964.pdf
[8]https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/politica/audio/2022-08/conheca-o-plano-de-governo-da-candidata-presidencia-soraya-thronicke
[9] https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-eymael.pdf
[10]https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-pablo-marcal-pros.pdf
[11]https://www.fundacao1demaio.org.br/conheca-as-principais-propostas-do-plano-de-governo-lula-alckmin-para-a-cultura/
Comments