Ultimamente tenho me debruçado, de forma inicial, sobre um pequeno pedaço da grandiosidade que é a filosofia oriental, especialmente a hindu. Diversas escolas, milênios de tradição e uma profundidade de conhecimento que, para nós ocidentais, criados na base da razão e do cientificismo, muitas vezes torna quase inalcançável a compreensão.
Não que tais escolas filosóficas não levem em conta a racionalidade ou que ignorem a ciência. Pelo contrário, uma delas[1], por exemplo, já estudava o átomo centenas de anos antes do ocidente “descobri-lo” por meio da física. A diferença maior, a meu ver, é o papel central da espiritualidade nessas filosofias, que muda toda a forma de compreender o mundo.
Um dos pontos que mais me chama a atenção nessa minha ousada – e incipiente – jornada é o foco que se dá à autonomia do indivíduo. De acordo com essas correntes de pensamento, toda a transformação que pode ocorrer no mundo advém pura e simplesmente da transformação interna, individual. E mais: é somente a partir dela que é possível, de fato, transformar a realidade.
Os caminhos para essa transformação interna são diversos, tendo a meditação um papel fundamental nessa jornada. No entanto, longe da ideia de “não pensar em nada”, a meditação é, na verdade, um forte instrumento de treinamento da mente para que ela possa estar focada no que interessa, livre das “tempestades” causadas por nossas emoções, sentimentos e pensamentos. Uma mente tranquila gera um corpo tranquilo, consciente, autônomo, capaz de compreender a realidade e agir de forma correta, assertiva, eficaz.
Por outro lado, esse foco na autonomia do indivíduo como um ser capaz de se transformar e, com isso, transformar tudo à sua volta, convive perfeitamente com o fato de que esse indivíduo é parte de um todo indivisível e que, por isso, tudo que ele faz repercute e afeta o coletivo, como uma força centrífuga, que parte do centro para fora, transformando tudo por onde passa.
A ideia de transformação interna, portanto, caminha de mãos dadas com a ação no mundo: tudo que existe tem uma causa, algo que lhe deu origem, e terá também um efeito, uma consequência. Toda ação, ou omissão, repercute no mundo e a responsabilidade de cada um é tanto por si quanto pelo todo.
Eis a grande questão. Essa posição de autonomia diante da vida me parece ser o ponto chave. Quantas vezes, especialmente em época de redes sociais, bradamos em posts os pensamentos que nunca realizamos? Defendemos ideias que sequer trazemos para o nosso dia-a-dia? Quão fácil é esperar que “alguém faça alguma coisa” diante dos absurdos diários?
A ideia geral que nos permeia é que a ação individual é “apenas uma gota no oceano”, que nada adianta jogar o lixo na lixeira se milhares os “rebolam[2]” pela janela do carro. A transformação do mundo seria, assim, papel dos governantes, dos religiosos, daqueles que estão “no front”, mas não minha, uma pequena fagulha no universo.
Na última semana, uma triste notícia permeou os jornais locais, e até mesmo nacionais. A estátua da “Mulher rendeira”, obra artística de José Corbiniano Lins, foi destruída em uma reforma “desastrosa” realizada pelo Banco do Brasil.
A restauração da obra somente será possível, no entanto, pela ação de um homem, que, se deparando com a destruição da obra e sua transferência para um aterro sanitário, resolveu agir e leva-la para sua casa, utilizando sua Kombi para carregar centenas de quilos de cimento e ferro.
José Viana da Silva[3] resolveu agir. E mudou o mundo, ou não? Somente por causa dele, a obra poderá voltar à vida. José aplicou, de forma precisa e eficaz, o dispositivo constitucional que determina que a sociedade civil irá colaborar com o Estado na proteção ao patrimônio cultural[4]. Na verdade, José foi além e fez o papel protetivo que é, em primeiro lugar, do Estado, o “malfeitor” no caso em questão.
Quem de nós faria o que ele fez? Talvez denunciaríamos tal destruição à imprensa, chamaríamos a polícia, quem sabe. Ou simplesmente tiraríamos uma “selfie” para postar nas redes sociais, junto a um #salvemopatrimoniocultural.
Salvem quem, ora, se não nós mesmos?
[1] Escola Vaisheshika. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Vaisheshika. Acesso em: 05 jun. 2020. [2] Sinônimo de “jogar fora”, na linguagem “cearês”. Para saber mais, acesse: https://www.abih-ce.com.br/br/dicionario-ceares/.
[3] https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/06/01/escultura-mulher-rendeira-e-encontrada-aos-pedacos-apos-desaparecer-em-fortaleza.ghtml
[4] Constituição Federal, Art. 216, § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
10/06/2020
Cecilia Rabêlo
Advogada, Mestre em Direito Constitucional e especialista em Gestão e Política Cultural.
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