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De quem é a camisola ? – A apropriação cultural pela moda


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Mas agora com que roupa? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou?

(Com que Roupa? – Noel Rosa)




Póvoa de Varzim - Trajes de Festa Tradicionais



Mas agora com que roupa? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou? Com que roupa que eu vou Pro samba que você me convidou?

(Com que Roupa? – Noel Rosa)




A Primavera chegou no Norte Global. Estilistas lançam suas originais coleções para a estação. Contudo, os desenhos e as peças que chamam a nossa atenção parecem que nem sempre são frutos do gênio criativo individual tão endeusado na sociedade do desempenho. Quem não sabe onde fica Póvoa de Varzim, nas últimas semanas deve ter colocado o nome da cidade pesqueira portuguesa, por curiosidade, para situar territorialmente a denúncia de apropriação cultural que circulou no mundo da moda.


A estilista norte-americana Tory Burch, após o lançamento de uma camisola de sua marca que custa 695 euros, foi acusada de “plágio” nas redes sociais pelo povo de Póvoa de Varzim e pelos usuários portugueses. A peça é muito semelhante à famosa camisola poveira que custa na comunidade local muito menos (cerca de no máximo 100 euros). Não é a primeira vez que ela é denunciada por apropriação cultural em virtude de suas coleções; os romenos enfrentaram situação similar quando a estilista lançou casaco sem atribuir créditos de sua inspiração à veste tradicional do país latino nos Balcãs.


Inicialmente, a estilista anunciou uma suposta inspiração mexicana para sua coleção. Entretanto, acabou por admitir a influência portuguesa. A camisola poveira é uma peça de artesanato de lã de fio grosso e bordada, que é feita há cerca de quase dois séculos, utilizada originariamente como roupa festiva. Como a loja da marca virou objeto de curiosidade dos portugueses, outros empreendimentos de produtos tradicionais lusitanos encontraram semelhanças entre, por exemplo, peças de cerâmica da estilista com famosa coleção de louças.


A estilista pediu desculpas, mas não foi suficiente. O mais curioso é que mantém em sua equipe designer portuguesa.


Desde 2020, Póvoa de Varzim solicitou ao Centro de Formação Profissional para o Artesanato e para o Patrimônio a certificação da camisola como produto artesanal tradicional, espécie de marca que identifica a indicação geográfica exclusivamente do artesanato que não seja nem agrícola nem agroalimentar, concedida no âmbito do Sistema Nacional de Qualificação e Certificação de Produções Artesanais Tradicionais. (1) Porém, não há notícias de sua conclusão.


O Governo português, através do seu Ministério da Cultura, imediatamente reagiu ao comunicado que estava analisando as medidas jurídicas cabíveis para requerer reparação de danos à cultura portuguesa. Imediatamente pensei na fragilidade e, ao mesmo tempo, na criatividade jurídica advinda dos mecanismos de salvaguarda do patrimônio cultural, cujos efeitos em regra não trazem qualquer menção explícita constitutiva de direitos exercíveis contra terceiros. Por outro lado, mesmo a antropofagia dos instrumentos tradicionais da propriedade intelectual pelos bens culturais imateriais, é limitada, pois direitos autorais, marcas, até mesmo indicações geográficas, não estão necessariamente interessados na narrativa da proteção dos valores de referência cultural e simbólicos.


Por exemplo, os direitos autorais e as características dos exclusivos conferidos legalmente não estão alinhados, em regra, com a natureza coletiva das expressões culturais tradicionais. A legislação autoral não foi pensada para esse campo, e sim para o indivíduo-autor. Do ponto de vista dos direitos autorais, podem não receber proteção alguma, tratando-se de expressão cuja origem e tempo de criação sejam impossíveis de identificar, concluindo-se tratar de obra pertencente ao domínio público em virtude de sua transmissibilidade ancestral não permitir a individualização da autoria.


As expressões tradicionais, enquanto manifestações casuísticas (momentâneas ou pontuais), efêmeras, mutáveis, processuais ou sagradas, sem fixação num suporte, sob a ótica autoralista, não seriam objeto dos direitos autorais, isto é, consideradas como obras intelectuais. Quando representam algum estilo ou sistema de símbolos pertencentes à determinada cosmovisão de povos ou comunidades tradicionais, geralmente são expressões consideradas pelo direito de autor em domínio público. Dessa forma, também estilos ou ideias recorrentes e comuns considerados nessas expressões não seriam protegidos por direitos de autor.


Em muitos casos, não há como precisar o momento da criação da expressão, portanto, sem autor e sem o início da publicização, não se sabe ao certo quando começaria o prazo de proteção. Igualmente, o fato de serem criações muito antigas e ancestrais, para o direito de autor, presumir-se-ia que se tratam de expressões em domínio público, como dito. Por falta do atendimento aos critérios da originalidade e da criação em um suporte, é previsível que sequer sejam consideradas obras intelectuais, portanto, impossíveis de serem protegidas por direitos autorais.


Assim também, embora em muitos desses casos haja a sobreposição de declarações de salvaguarda dos bens com marcas coletivas e indicações geográficas, instrumentos típicos da propriedade industrial, nessas circunstâncias, as desvantagens que se apresentam é que esses sinais distintivos não deixam de tratar esses produtos como mercadorias, a par do seu valor cultural e simbólico. No máximo, são valores considerados acessórios. Igualmente, não alcançam o bem cultural imaterial em si, mas a parte material dos resultados dos seus processos manifestos em objetos/produtos.


A utilização de bem cultural imaterial sem a devida menção à influência ou inspiração não é algo novo, ao contrário, é algo bem frequente, infelizmente, na indústria têxtil e da moda. Talvez aqui, neste episódio, a modernidade ocidental europeia, que tantas vezes anunciou a morte das tradições culturais ou sua obsolescência, bem como contribuiu para o desaparecimento ou mudanças adaptativas profundas nas culturas das suas ex-colônias, durante a conquista do espírito do Outro, tenha despertado do sono profundo para a importância e a valorização do seu próprio patrimônio imaterial. Apesar de acompanhar a crescente tentativa de ampliação de mecanismos de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, grandes empresas, vezes, preferem arriscar-se em violações do direito a este comum de povos e comunidades tradicionais, resolvendo os conflitos advindos desses usos não referenciados ou não autorizados pela via contratual da compensação financeira e eventuais perdas e danos com propostas materialmente tentadoras, forçando os detentores de saberes e expressões tradicionais a firmar pactos que em outras circunstâncias não sancionariam.


A Câmara de Póvoa de Varzim, em iniciativa conjunta com os/as artesãos/ãs, soube transformar a denúncia em iniciativa positiva: hoje as camisolas poveiras estão à venda online (2) pelo preço justo que se reverte na sua totalidade para os responsáveis pela produção artesanal. O município também apostou na capacitação da formação de novos artesãos para dar conta da procura pela camisola após a polêmica com a estilista. Ainda assim, os mecanismos jurídicos existentes para proteção dos produtos do saber-fazer tradicional são inadequados e insuficientes para lidar com essa realidade.


Certos países como o Panamá, para citar um único exemplo, há anos avançaram com legislações defensivas que criam outro tipo de regulamentação que não só tem determinada espécie de criação cultural como bem coletivo e social, como se preocupam com a adequada remuneração do(a)s artesã(o)s. (3) Um dos motivos propulsores para que o Estado panamenho levasse em consideração os direitos criativos de suas comunidades indígenas foi exatamente a apropriação pelo mercado da moda do designer típico de camisas artesanais produzidas e exclusivamente utilizadas por mulheres da etnia Kuna, denominadas de molas.


Um grande passo para reverter essas tentativas de apropriação cultural pelo mercado através da titularidade exclusiva seria deixar o novo – que nem é tão novo assim – nascer: por que não pensarmos em um regime jurídico particular de direitos intelectuais coletivos de povos e comunidades tradicionais sobre os produtos de suas expressões e saberes-fazeres?

Rodrigo Vieira - Coordenador do Curso de Direito e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado da UFERSA. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

(3) Lixinski, Lucas. Intangible Cultural Heritage in International Law. Reino Unido: Oxford University Press, 2013.

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