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Direitos culturais em reconfiguração



A questão dos direitos culturais, a partir de uma noção mais aberta e dinâmica, tem sido objeto de grande destaque no debate internacional nos últimos tempos. Busca-se uma nova análise das dimensões desses direitos como fator relevante para obtenção da paz, para a diminuição das desigualdades sociais, econômicas, territoriais, raciais, de gênero e, principalmente, para a proteção dos direitos humanos.


Isto é, os direitos culturais como ferramenta que nos permita pensar plenamente nos homens como seres livres, iguais e individualizados [1], vinculando no âmago de seu sistema os direitos civis e sociais [2], tais como a liberdade de expressão, direito de associação e dos espaços públicos, direito à alimentação, direito ao meio ambiente saudável, direito à habitação e à paisagem, direito ao trabalho, entre outros.


Nesse sentido, o “Grupo de Friburgo”, grupo internacional de especialistas, vem se reunindo periodicamente para discutir o aprimoramento e eventual atualização da Declaração de Friburgo sobre os Direitos Culturais, publicada há mais de quinze anos [3]. O próximo encontro será no, já notório academicamente, “XI Encontro Internacional de Direitos Culturais”, apoiado pelo Instituto Brasileiros de Direitos Culturais (IBDCult) e realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), através do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (CNPQ/UNIFOR), que tem por objetivo estudar e difundir os Direitos Culturais.


O evento, realizado totalmente online este ano, compreenderá palestras, apresentações de trabalhos acadêmicos, grupos de debates e, ainda, uma mesa especialmente dedicada à temática da reconfiguração dos direitos culturais a partir do aprimoramento da Declaração dos Direitos Culturais de Friburgo. A ideia será abordar a ação democrática no campo dos direitos culturais, debatendo a penetração dos direitos culturais em diversas áreas e em todas as suas dimensões, da política à sociedade e aos direitos humanos. Questionando ainda sobre o valor, a importância do texto da declaração na orientação das políticas públicas na América Latina (culturais, ecológicas, econômicas, sociais, entre outros) e sua respectiva efetividade.


Em tal contexto, é importante ressaltar que, no âmbito nacional, diversos obstáculos e desafios são observados no que se refere à efetividade do cumprimento de direitos culturais previstos na Declaração de Friburgo. Ao reconhecer um papel relevante na efetivação desses direitos, chama a atenção o acesso às fontes de cultura para a formação do cidadão, o que deve ser garantido pelo Estado de Direito Democrático.


Isto é, desde a consolidação de uma democratização cultural baseada em primeiro lugar na participação e acesso de todos os cidadãos à cultura, à fruição e criação culturais, como, em segundo lugar, numa vertente de democracia cultural, no amparo da forma mais ampla desses direitos, como explica Bacre Ndiaye, “trata-se [...] de buscar a melhor maneira de garantir que cada pessoa, qualquer que seja sua identidade ou localização geográfica, possa se apropriar dos direitos humanos, com base principalmente em uma história particular e contexto cultural. Compreendendo, assim, o termo “cultura” (singular), sempre no plural “culturas” [4]

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Contudo, a questão do acesso e participação aos direitos culturais é complexa. Pois a territorialização de políticas públicas vai além da simples criação de mecanismos de repasse de recursos e de projetos do nível federal para os municípios e estados. O professor Humberto Cunha, em artigo recente sobre “O agir democrático e o princípio da subsidiariedade no âmbito dos direitos culturais” [5], ressalta a problemática da hipertrofia do governo federal que frequentemente suprime o poder decisório das instâncias municipais e estaduais (mais próximas da população).


Assim, num país como o Brasil, dividido entre carências profundas e privilégios políticos e sociais solidificados secularmente, apresentar uma política cultural de forma democrática [6], com a participação efetiva de todos os cidadãos, fortalece a garantia de direitos existentes e cria outros, afirmando a luta do desmonte de privilégios.


Por fim, no tocante a apropriação desses direitos a partir de uma perspectiva múltipla, podemos destacar vários pontos transversais, como o desafio de associar o reconhecimento de identidades plurais à preservação do meio ambiente, considerando que as relações entre natureza e cultura se manifestam de várias formas. Assim, não se pode negligenciar a importância dos modos do viver humano que se articula à noção de paisagem, incorporando às relações do homem com o meio ambiente. Na atual perspectiva mundial de crise energética e de fortes agressões ambientais é notória a pertinência em ampliar tal discussão para o âmbito dos Direitos Culturais.


São tempos sérios! Acreditamos que refletir sobre a importância, amplitude e efetividade dos direitos culturais é muito importante para o atual cenário brasileiro e mundial, podendo não somente ampliar o intercâmbio entre juristas, pesquisadores e estudantes que atuam nessa área, mas conjuntamente com diversas comunidades buscar instrumentos para a construção de novas ações democráticas e de um desenvolvimento sustentável. Junte-se a nós!


*Anita Mattes, Professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, Doutora pela Université Paris-Sanclay, Mestre pela Université Panthén-Sorbone. Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Sócia-fundadora do escritório Studio Mattes


Notas


[1] BIDAULT, M. Ce que déclarer des droits culturels veut dire. Rev. Droits fondamentaux, n° 7, dezembro de 2009, disponível em: https://www.crdh.fr/wp-content/uploads/debat_ce_que_declarer_des_droits_culturels_veut_dire.pdf.



[3] A Declaração, idealizada por professores, observadores, pesquisadores e especialistas de vários continentes do Observatório da Diversidade e dos Direitos Culturais, vinculado à Universidade de Friburgo, à Organização Internacional da Francofonia, à UNESCO e ao Conselho da Europa, reúne e esclarece direitos que já são reconhecidos, mas de forma dispersa, nos diversos instrumentos jurídicos internacionais existentes, na Declaração universal dos direitos do homem, nos pactos internacionais das Nações Unidas, na Declaração universal da UNESCO sobre a diversidade cultural e os outros instrumentos universais e regionais pertinentes. Veja: Declaração dos Direitos Culturais de Friburgo, https://www.joinville.sc.gov.br/wp-content/uploads/2017/09/Direitos-Culturais-Declaração-de-Friburgo.pdf.


[4] Bacre Waly Ndiaye, Diretor da divisão do Conselho de direitos do homem e procedimentos especiais da ONU, 2010, disponível em: www.ohchr.org/EN/Issues/CulturalRights/Pages/Documentation.aspx.



[6] Veja Marilena Chauí em sua experiência pessoal como Secretaria municipal da cultura do Estado de São Paulo no governo da Prefeita Luísa Erundina, in Cidadania cultural. O direito à cultura, FPA, 2010, p. 65 e seguintes.

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