
Fui honrado com a deferência de participar, virtual e presencialmente (em Villeurbanne, uma cidade conurbada com Lion – França) junto ao Grupo de Friburgo – Suíça, liderado pelo Professor Patrice Meyer-Bisch, de alguns debates para construção de uma nova Declaração de Direitos Culturais [1], que eventualmente substituirá o prestigioso documento de 2007.
A proposta apresenta como novidades a atualização de entendimentos relativamente à primeira Declaração, bem como a incorporação dos aspectos culturais dos outros direitos humanos, ideia esta que, por sua largueza, de pronto me provocou estranhamento, dada a grande quantidade de direitos humanos reconhecidos e a minha compreensão linguística de que se almejava trabalhar o aspecto cultural de todos eles.
Esse entendimento acionou em mim as lembranças da teoria geral do Direito [2], segundo a qual todas as normas do universo jurídico têm uma emanação da cultura de onde são geradas [3], o que fez com que a proposta me parecesse em certa medida desnecessária, e noutra, impossível, porque a vinculação cultural já é imanente a todos os direitos, e querer evidenciá-la em cada caso seria equivalente a percorrer um caminho infinito.
Essa compreensão, todavia, foi alterada quando revendo meu livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”, com o objetivo de prepará-lo para a terceira edição, deparei-me com a seguinte passagem:
“Quanto aos direitos sociais e econômicos, na sua operacionalização mais usual, têm ligações eminentemente presenciais, uma vez que são utilizados como instrumentos para solução dos problemas enfrentados na atualidade, o que, com frequência, leva seus operadores a negligenciarem o passado e o futuro, mesmo que os resultados sejam desastrosos a curto, médio ou longo prazo. Quando tais direitos se referenciam nas experiências e têm cautelas para com os efeitos gerados, não se transmudam necessariamente em culturais, mas deles ficam imantados. Esse fenômeno de imantação de outros campos do direito é mais um elemento caracterizador dos direitos culturais, que com grande frequência aparecem nas relações sociojurídicas como coadjuvantes, mas de tão elevada importância a ponto de os direitos-protagonistas não cumprirem seus objetivos de forma satisfatória se forem suprimidos. Portanto, nos campos que lhes são próprios, os direitos culturais desempenham papel principal; nos demais, são acessórios, porém, indispensáveis” [4].
Esse achado, na minha própria obra, me fez perceber que a divergência com os colegas de Friburgo era substancialmente aparente e muito mais semântica que linguística, girando em torno do significado das palavras no universo cultural, a começar pela dificuldade no entendimento do que seja cultura, expressão com milhares de significados que, quando unida a outros campos valorizadores dos embates hermenêuticos (os da interpretação), como é o direito, o desafio comunicacional se eleva à enésima potência.
Com esse autoesclarecimento, apesar de sua “nova análise do caráter fundamental da dimensão cultural de todos os direitos humanos” [5], percebi que o Grupo de Friburgo, ao centrar esforços, não em todos, mas em selecionados temas direitos humanos umbilicalmente vinculados com os direitos culturais, como trabalho (enfatizando o trabalho artístico-cultural, por exemplo), alimentação (destacando os aspectos ritualísticos e culinários), moradia (jogando luzes sobre as relações culturais privadas), espaço público (sublinhando as relações culturais no ambiente social) e informática (como novo instrumental de construção e difusão de saberes), estudados com afinco e profundidade por equipes multidisciplinares, cujos componentes têm em comum a paixão e o exercício de atividades no universo cultural, faz um recorte factível e operacional para a proposta que deseja concretizar.
Assim, é muito provável que tenhamos em breve o aprimoramento da Declaração de Friburgo para os Direitos Culturais que, nascida na academia, merecidamente ganhou espaço em todos os ambientes em que se discutem e disputam os direitos culturais, desta feita com a perspectiva de que ainda se comunica melhor com os interessados, pois discutida com muitas pessoas de diversas partes do mundo, que podem contribuir com suas linguagem e seus valores, permite que a nova Declaração espelhe a diversidade humana, e não apenas a de uma específica dimensão geopolítica do globo terrestre.
Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”
Notas
[1] MEYER-BISCH, Patrice; Bidault, Mylène; Baccouche, Taïeb; Borghi, Marco; Bourke-Martignoni, Joanna; Dalbera, Claude; Decaux, Emmanuel; Donders, Yvonne; Fernandez, Alfred; Imbert, Pierre; Marie, Jean-Bernard; Meuter, Sacha; Sow, Abdoulaye. Afirmar os Direitos Culturais: Comentário à Declaração de Friburgo (Coleção Os Livros do Observatório) (Portuguese Edition). Itaú Cultural. Edição do Kindle.
[2] REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. Idem. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.
[3] HÄBERLE, Peter. Le libertà fandamentali nello stato constituzionale. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1993.
[4] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: Fundamentos e finalidades (Portuguese Edition) (p. 23). Edições Sesc SP. Edição do Kindle.
[5] OBSERVATOIRE DE LA DIVERSITE ET DES DROITS CULTURELS. Les droits culturels sont-ils au cœur des droits humains?. Online: 2022. Disponível em: https://droitsculturels.org/observatoire/wp-content/uploads/sites/6/2022/05/15ansFrbourg_prog23-24mai.pdf
Droits Culturels : Le defi gigantesque du Groupe de Fribourg
J'ai eu l'honneur de participer, virtuellement et en personne (à Villeurbanne, une ville conurbée avec Lyon - France) avec le Groupe de Fribourg - Suisse, dirigé par le Professeur Patrice Meyer-Bisch, à quelques débats pour la construction d'une nouvelle Déclaration des droits culturels [1], qui remplacera éventuellement le prestigieux document de 2007.
La proposition présente comme nouveautés la mise à jour des interprétations relatives à la première Déclaration, ainsi que l'incorporation des aspects culturels des autres droits humains, idée qui, de par son ampleur, m'a d'emblée provoqué un certain étonnement, étant donné le grand nombre de droits humains reconnus et ma compréhension linguistique selon laquelle on aspirait à travailler l'aspect culturel de chacun d'eux.
Cette compréhension a réveillé en moi les souvenirs de la théorie générale du droit [2], selon laquelle toutes les normes de l'univers juridique émanent de la culture dont elles sont issues [3], ce qui m'a fait considérer la proposition comme, dans une certaine mesure, inutile, et dans une autre, impossible, car le lien culturel est déjà immanent à tous les droits, et vouloir le mettre en évidence dans chaque cas équivaudrait à parcourir un chemin infini.
Cette compréhension a toutefois été modifiée lorsque, en revoyant mon livre "Théorie des droits culturels : fondements et finalités", dans le but de le préparer pour la troisième édition, je suis tombé sur le passage suivant :
"Quant aux droits sociaux et économiques, dans leur mise en œuvre la plus courante, ils ont des liens éminemment présents, car ils sont utilisés comme instruments pour résoudre les problèmes rencontrés dans l'actualité, ce qui, fréquemment, amène leurs opérateurs à négliger le passé et le futur, même si les résultats sont désastreux à court, moyen ou long terme. Lorsque de tels droits se réfèrent aux expériences et prennent des précautions quant aux effets générés, ils ne se transforment pas nécessairement en culturels, mais ils en sont imprégnés. Ce phénomène d'imprégnation d'autres domaines du droit est un élément caractéristique de plus des droits culturels, qui apparaissent très souvent dans les relations socio-juridiques comme des seconds rôles, mais d'une importance si élevée que les droits protagonistes ne remplissent pas leurs objectifs de manière satisfaisante s'ils sont supprimés. Par conséquent, dans les domaines qui leur sont propres, les droits culturels jouent un rôle principal ; dans les autres, ils sont accessoires, mais indispensables" [4].
Cette découverte, dans ma propre œuvre, m'a fait réaliser que la divergence avec les collègues de Fribourg était substantiellement apparente et beaucoup plus sémantique que linguistique, tournant autour de la signification des mots dans l'univers culturel, à commencer par la difficulté de comprendre ce qu'est la culture, expression aux milliers de significations qui, lorsqu'elle est unie à d'autres domaines valorisateurs des débats herméneutiques (ceux de l'interprétation), comme l'est le droit, le défi communicationnel s'élève à la énième puissance.
Avec cet auto-éclaircissement, malgré sa "nouvelle analyse du caractère fondamental de la dimension culturelle de tous les droits humains" [5], j'ai perçu que le Groupe de Fribourg, en concentrant ses efforts non pas sur tous, mais sur des thèmes sélectionnés de droits humains liés de manière ombilicale aux droits culturels, comme le travail, l'alimentation (mettant en évidence les aspects rituels et culinaires), le logement (mettant en lumière les relations culturelles privées), l'espace public (soulignant les relations culturelles dans l'environnement social) et l'informatique (en tant que nouvel instrument de construction et de diffusion des connaissances), étudiés avec assiduité et profondeur par des équipes multidisciplinaires, dont les membres ont en commun la passion et l'exercice d'activités dans l'univers culturel, fait une coupe réalisable et opérationnelle pour la proposition qu'il souhaite concrétiser.
Ainsi, il est fort probable que nous ayons bientôt l'amélioration de la Déclaration de Fribourg pour les droits culturels qui, née dans le monde académique, a mérité de gagner de l'espace dans tous les environnements où se discutent et se disputent les droits culturels, cette fois-ci avec la perspective qu'elle communique encore mieux avec les intéressés, car discutée avec de nombreuses personnes de diverses parties du monde, qui peuvent contribuer avec leurs langages et leurs valeurs, permettant à la nouvelle Déclaration de refléter la diversité humaine, et pas seulement celle d'une dimension géopolitique spécifique du globe terrestre.
Humberto Cunha Filho - Professeur de droits culturels dans les programmes de licence, de master et de doctorat de l'Université de Fortaleza (UNIFOR). Président d'honneur de l'IBDCult - Institut brésilien des droits culturels. Auteur, entre autres, du livre "Théorie des droits culturels : fondements et finalités" (Éditions SESC-SP).
Référances bibliografiques
[1] MEYER-BISCH, Patrice; Bidault, Mylène; Baccouche, Taïeb; Borghi, Marco; Bourke-Martignoni, Joanna; Dalbera, Claude; Decaux, Emmanuel; Donders, Yvonne; Fernandez, Alfred; Imbert, Pierre; Marie, Jean-Bernard; Meuter, Sacha; Sow, Abdoulaye. Affirmer les droits culturels: Commentaire à la Déclaration de Fribourg (Collection Les Livres de l'Observatoire) (Édition portugaise). Itaú Cultural. Édition Kindle.
[2] REALE, Miguel. Cinq thèmes du culturalisme*. São Paulo: Saraiva, 2000. Idem. Théorie tridimensionnelle du droit. São Paulo : Saraiva, 1994.
[3] HÄBERLE, Peter. Le libertà fandamentali nello stato constituzionale. Roma : La Nuova Itália Scientifica, 1993.
[4] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Théorie des droits culturels : Fondements et finalités* (Édition portugaise) (p. 23). Éditions Sesc SP. Édition Kindle.
[5] OBSERVATOIRE DE LA DIVERSITE ET DES DROITS CULTURELS. Les droits culturels sont-ils au cœur des droits humains?. En ligne : 2022. Disponible sur : https://droitsculturels.org/observatoire/wp-content/uploads/sites/6/2022/05/15ansFrbourg_prog23-24mai.pdf
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