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Não restam dúvidas que atualmente as pautas sobre mudanças climáticas, proteção ao meio ambiente, novas políticas alimentares e energias renováveis não são meros proselitismos verdes. O Protocolo de Kyoto, convenção marco das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, foi publicado há mais de 20 anos e, além de não chegarmos a uma mudança global estrutural, continuamos gerando mais emissões de carbono na atmosfera do que nos anos anteriores. Na verdade, como observa David Wallace-Wells, mais da metade do carbono dissipado na atmosfera devido à queima de combustíveis fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas [1]. O cenário atual é, assim, mais assustador do que antes, transformando tais temas em questões graves e urgentes.
Diante desse panorama, pequenos movimentos de ativistas ambientais europeus começaram a chamar a atenção da opinião pública para as suas reivindicações, danificando (seja de forma real ou mesmo simbólica) monumentos e obras de arte. Uma ação recente ocorreu no Louvre, onde atiraram sopa na obra Mona Lisa de Leonardo Da Vinci, justificando a legitimidade de tal ato pelo “direito a uma alimentação saudável e sustentável”. Mas tivemos, igualmente, na Itália, o derramamento de um líquido preto na Fontana della Barcaccia, na Piazza di Spagna em Roma, causando danos substanciais ao mármore do monumento. Outro caso recente foi sujar com tinta laranja a porta da entrada do Senado, histórico Palazzo Madama, construído no século XV pela família florentina Médici e, ainda, manchar o muro externo da famosa Basílica de San Marco em Veneza.
O bem cultural italiano tem sido alvo central desses tipos de ataques. Tais ofensivas a monumentos e locais artísticos “causam danos econômicos a toda a comunidade”, segundo o ministro da Cultura, Gennaro Sangiuliano. “A limpeza requer a intervenção de pessoal altamente especializado e a utilização de máquinas muito caras. Quem pratica estes atos, também deve assumir a responsabilidade financeira” [2], afirmou.
Diante deste cenário, o Estado italiano decidiu, então, usar mão de ferro contra os ativistas climáticos (ou ecovândalos, como são chamados) no território.
Com base no artigo 9º da Constituição, que dispõe ser dever do Estado tutelar o patrimônio histórico e artístico visando o interesse das gerações futuras, o ministro da Cultura propôs projeto de lei com diversas sanções relativas à “destruição, deterioração, desfiguração, conspurcação, inutilização e utilização ilícita de bens culturais ou paisagísticos” [3].
Após aprovação expressiva pelo Senado, em setembro de 2023, e pela Câmara dos Deputados, na sessão de 18 de janeiro de 2024, o projeto de lei do Executivo resultou em novas e pesadas sanções administrativas. O texto prevê multas mais elevadas que se somam às sanções já existentes de natureza penal (com pena de prisão de seis meses a cinco anos).
Assim, as novas multas administrativas, cujos rendimentos serão doados ao Ministério da Cultura para a restauração de bens danificados, serão:
- Mínimo 20 mil e máximo 60 mil euros para quem destrói, estraga, deteriora ou torna os bens culturais ou paisagísticos total ou parcialmente inutilizáveis e,
- Mínimo 10 mil e máximo 40 mil euros para quem desfigura, suja ou utiliza bens culturais para uso prejudicial ou incompatível com o seu caráter histórico ou artístico (referência explícita aos recentes grupos de ativistas ambientais).
Isto é, além de eventuais prisões, tais ativistas ficam sujeitos ao pagamento de multas bem elevadas.
Mas serão essas normas realmente eficazes para frear tal fenômeno? Ou, como alega a oposição italiana, será somente mais uma medida repressiva clássica e, eventualmente populista, que não objetiva afrontar e entender tal fenômeno social cada dia mais difuso entre os jovens europeus na atualidade?
O vandalismo, a destruição de bens comuns localizados em espaços públicos como ação comunicativa, implica uma valorização do antivalor, pois quem “vandaliza” quer destruir, quer se desfazer e, de certa forma, refazer o patrimônio. Podemos citar casos semelhantes que tiveram muito espaço nos meios de comunicação alguns anos atrás, durante o movimento Black Lives Matter.
A despeito da questão se tais atos são válidos ou não, a destruição das estátuas do Rei Leopoldo II na Bélgica, do traficante de escravos Edward Colston em Bristol, e até do Borba Gato em São Paulo, tinham um propósito sociocultural explícito: representavam a “demolição” de uma história institucional oficial preconceituosa e racista.
No caso em questão dos “ecovândalos”, o ato de destruição tem um outro significado. Aqui, o patrimônio cultural não participa, ele é simplesmente vítima! Relegado a um segundo plano, a sua destruição ou mutilação é um mero instrumento para chamar atenção de uma questão que, apesar de uma reivindicação legítima, desconsidera toda a cultura, o passado, a história e identidade cultural representada daquela obra ou monumento.
Diante desse cenário, mera punição seria solução? Talvez seria uma oportunidade para repensarmos a questão da educação patrimonial. A alfabetização cultural, efetivamente, pode ser o fio condutor como estratégia para uma solução mais eficaz, possibilitando ao indivíduo uma maior compreensão do mundo em que vive, fazendo com que ele seja capaz de entender a sua trajetória sociocultural, histórico-temporal e, principalmente, de adquirir uma consciência civil, valorizando e respeitando a sociedade e o patrimônio cultural.
*Anita Mattes é doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbone, professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Notas :
[1] Veja artigo de 2019 de David Wallace, “Desastres em cascata. O sistema climático sob o qual foi criada a civilização esta morto”, in https://piaui.folha.uol.com.br/materia/desastres-em-cascata.
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