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Federalismo de sobreposições descoordenadas na proteção do patrimônio cultural


É injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e indústria


Papa Pio XI, Encíclica Quadragésimo Anno




O Estado Federal nasce no século XVIII nos Estados Unidos da América quando na Convenção da Filadélfia (1787) resta vitoriosa a proposta de adesão dos Estados Americanos (antigas colônias Britânicas) a uma Constituição comum, com um governo central e atribuições definidas na própria Constituição, além de fonte de receitas próprias para efetivar suas competências.


O Brasil adota em sua Constituição (1988) a forma federal de Estado, em que a sua estrutura e funcionamento são revelados pela distribuição de poder (competências) entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. No caso particular do patrimônio cultural, este é atribuído no âmbito da competência administrativa de forma comum a todos os entes da federação, ou seja, todos possuem o poder-dever de selecioná-lo, protegê-lo e promovê-lo com a colaboração da comunidade.


Contudo, ao contrário do que propugna o federalismo e o princípio da subsidiariedade, que para Baracho (1) tem naquele (federalismo) a implementação desse (subsidiariedade) na vida do Estado, há no Brasil uma forte centralização da proteção do patrimônio cultural na órbita da União (poder central) ocasionada pela aparente ausência de critérios constitucionais e legais (omissão legislativa) de atuação cooperativa entre os entes da federação nessa seara cultural.


Assim, a União acaba se valendo da sua estrutura centralizadora e de maior abrangência, fruto do próprio processo de formação da federação brasileira, desde a Proclamação da República (1889), para exercer as competências que são atribuídas de forma comum a todos os entes, mas sem a preocupação de observar o princípio da subsidiariedade que não é expresso na Constituição (1988), mas que se encontra implícito, sendo aferível a partir da própria adoção do Estado Federal.


O princípio da subsidiariedade é uma forma peculiar de organizar a vida em sociedade e que se baseia, segundo Messner (2), na fórmula “tanta responsabilidade própria quanto possível, tanta intervenção do Estado quanto necessária”. Ou, como apregoa o Papa Pio XI na Encíclica Quadragésimo Anno que “o fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los”, bem como que é uma injustiça atribuir a sociedades maiores ações que sociedades menores podem executar por esforço próprio.


Neste sentido, a subsidiariedade possui duas faces que interagem e se complementam na concretização da competência comum dos entes federativos: uma que limita a intervenção do ente de maior abrangência (União) nos de menor abrangência (Municípios ou Estados) se esses possuem capacidade de agir por suas próprias forças; e outra, que impele o ente de maior abrangência a agir, coadjuvando os entes de menor abrangência, se esses se mostrarem incapazes de atuar por seus próprios meios na execução das suas competências.


Assim, o princípio da subsidiariedade coloca para os entes da federação no campo da proteção do patrimônio cultural a exigência de um diálogo federativo, tanto deles entre si, quanto deles com a comunidade. Contudo, esse diálogo entre os entes da federação é quase inexistente, fazendo o federalismo cooperativo, idealizado pela Constituição (1988), ser, na verdade, um federalismo de sobreposições descoordenadas em que cada ente atua segundo interesses estanques, quando não se omitem de forma generalizada, um esperando a atuação do outro.


É preciso mudar esse estado de coisas! Uma lei regulamentadora da atuação cooperativa dos entes da federação é um caminho, mas que parece distante pela apatia e aparente desinteresse do Legislador. Mas o intérprete e aplicador do Direito pode construir as soluções a essa sobreposição descoordenada pela aplicação do princípio da subsidiariedade, assegurando a primazia dos Municípios no exercício da competência comum no campo da proteção do patrimônio cultural, cuja definição constitucional impõe a participação da comunidade que tem vínculos mais fortes a nível local (municipal).

Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”.

(1) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e revolução. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 200, p. 21-54, abr. 1995, p. 50.

(2) MESSNER, Johannes. Ética social: o direito natural no mundo moderno. Trad. Alípio Maia de Castro. São Paulo: Quadrante, 1970, p. 287.

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