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Fundos patrimoniais e os acervos dos museus


(Foto: Divulgação MAM/RJ)


Quando, em 2018, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro anunciou que iria leiloar a obra “Nº 16” de Jackson Pollock, por conta de dificuldades financeiras que aquela instituição passava, houve uma enxurrada de críticas sobre a pertinência e a legalidade dessa transação.


É que o desfazimento do acervo de uma instituição museológica para pagar despesas correntes vai de encontro aos princípios éticos estabelecidos pelo International Council of Museums (ICOM) e à função social dos museus expressa no Estatuto dos Museus. Isso poderia abrir um precedente perigoso no Brasil, onde a falta de recursos para a gestão cultural é a regra.


Mas por estar em um museu privado e não ser uma obra tombada (o que não impediria a venda, mas sim a remessa para fora do país), não há, expressamente, impeditivo legal para a alienação de acervos no país, a não ser pela argumentação de descumprimento da função social do museu, um conceito ainda em aberto.


Há, como já mencionado, um imperativo ético encampado pelo ICOM que diz que os acervos de museus são constituídos para a coletividade e não devem ser considerados como ativos financeiros, de sorte que “os recursos ou vantagens recebidos pela alienação [...] devem ser usados somente em benefício do próprio acervo e, em princípio, para novas aquisições de acervo”.


Diversas entidades expressaram preocupação com esse negócio anunciado pelo MAM por ferir a diretriz deontológica de que é possível vender acervo, sim, desde que orientada pela finalidade de constituir novo acervo dentro da Política de Aquisição dos Museus. Pagar contas atrasadas, portanto, não observaria essa condição finalística.


Vale destacar a posição do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia responsável pela política museológica brasileira, que, em março de 2018, manifestou-se, por nota pública, contrariamente ao intento do MAM, solicitando a suspensão da venda.


Mesmo assim, a obra foi a leilão. No final de 2019, no primeiro evento da Phillips, em Nova York, a obra sequer atingiu o valor mínimo exigido, sendo considerado pela imprensa um fiasco, o que simbolicamente expressa o sentimento de quem trabalha no setor cultural aqui no Brasil: “estamos querendo nos desfazer de nosso patrimônio, mas nem isso estamos conseguindo”. Triste realidade.


Somente no começo do ano seguinte, em fevereiro de 2020, o “Nº 16” foi vendido pela casa de leilões Phillips, por metade do valor anunciado no primeiro leilão, cerca de US$ 13 milhões. Vender lá fora era estratégico em razão da desvalorização do real frente ao dólar.

É equivocado pensar que o MAM estava dilapidando o seu acervo para pagar boletos. Essa é uma visão grosseira. Ele tinha, na verdade, um projeto sofisticado de institucionalização de um fundo patrimonial, onde seriam alocados recursos advindos da venda da obra de Pollock, dentre outros, para conferir sustentabilidade financeira para a instituição. O MAM, noutras palavras, queria instituir um endowment.


Para quem não lembra, uma semana depois do incêndio do Museu Nacional, e tendo tal tragédia como justificativa, o governo federal editou duas Medidas Provisórias: MP 850 e MP 851. A primeira anunciava a extinção do IBRAM e previa a criação da Agência Brasileira de Museus (Abram); e outra que criava parâmetros para a criação de fundos patrimoniais, inclusive para o Poder Público.


Ambas medidas provisórias tinham que ser convertidas em lei pelo Congresso Nacional. Houve uma forte mobilização contra a MP que extinguia o Ibram, especialmente de atores ligados ao campo da museologia, atraindo o apoio de grande parte do setor cultural.

Enquanto isso, a MP dos fundos patrimoniais avançava fortemente nos bastidores, com intensa (porém restrita) participação de grupos diretamente interessados que já vinham construindo um marco legal sobre a matéria antes mesmo do trauma da Quinta da Boa Vista.


O setor cultural escolheu atacar a MP 850, que não vingou. O Ibram se salvou (não se sabe até quando face ao atual desmonte). A MP 851, por outro lado, foi convertida na Lei 13.800/2019, regulamentando o tal dos endowments.


O Ibram, nesse processo político, foi o “boi de piranha” dos endowments. O irônico é que, nesse exato momento, juntamente com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Ibram está contratando consultoria especializada para construir uma arquitetura de fundos patrimoniais para os museus brasileiros.


Mas de onde vem esse mecanismo? Os endowments foram concebidos num modelo completamente diferente do nosso, sendo bastante usado nos EUA. Mas está inserido num contexto jurídico e político completamente diferente do nosso.


No livro “Cultura e democracia” de Alexandre Barbalho, é possível compreender como os endowments se encaixam na ótica do liberalismo substancialista norte-americano – que tem o valor do sentido da vida orientado pelo padrão White, Anglo-Saxon, Protestant (WASP).

O WASP, nessa perspectiva substancialista, não só afirma o valor fundante da nação norte-americana, mas também pode nos ajudar a entender a origem liberal dos endowments. Essa origem está intimamente conectada à noção de filantropia, trazida pelos valores protestantes do WASP.


Uma das principais críticas que se faz ao mecanismo dos endowments, no Brasil, é que ele não vingará facilmente, pois não temos a cultura da doação; seria necessário um trabalho sistemático para induzir essa prática. Ademais, o veto do Presidente Jair Bolsonaro, quando a MP foi convertida em lei, anulou a principal forma de convencer os filantropos a aportarem recursos em fundos dessa natureza: os incentivos fiscais.


Nos Estados Unidos, os endowments são estimulados, sim, por uma política fiscal, mas é muito mais do que isso: existe um pensamento liberal por trás que fortalece a relação entre empresas e terceiro setor, enraizando a cultura da filantropia.


Andrew Carnegie – que batiza a meca do jazz nos EUA - é considerado o pai da filantropia. Em 1889 escreveu “The Gospel of Wealth”. A tese de Carnegie pode ser sintetizada na seguinte frase: “a repartição da fortuna possibilita estabelecer lugares de fraternidade que reconciliam e mantêm juntos harmoniosamente ricos e pobres”. Carnegie listou ainda quatro princípios dos donativos:


1.Filantropia ≠ caridade - A primeira disponibiliza meios para que os beneficiados se tornem independentes, enquanto o segundo resolve uma necessidade imediata;


2.Gestão eficaz x Gestão ineficiente do Estado;


3.Homem de posse (em vida) deve se dedicar em dinheiro e tempo à filantropia, sobretudo para garantir o sucesso do donativo;


4.Saber escolher bem as doações.


Um dos aspectos mais angustiantes na importação dos endowments é o primeiro princípio de Carnegie que ainda é o núcleo desse mecanismo, ou seja, a regra de que a instituição beneficiada não pode mexer no valor principal, mas apenas viver dos rendimentos. Isso é de uma frieza e crueldade colossal para a nossa realidade. É como pedir para as pessoas famintas – a exemplo de muitos profissionais da área da Cultura - se controlarem, pois não podem tocar no banquete que está sendo servido. Devem esperar os frutos da refeição solene.


Barbalho ensina que Carnegie estabeleceu os princípios em 1889, mas foram os Rockefeller que nacionalizaram e profissionalizaram a filantropia através de sua primeira fundação, em 1913. Adivinhem quem doou o “Nº 16” de Pollock para o MAM? Diz-se que o velho Rockefeller era uma das figuras mais detestáveis do meio empresarial norte-americano e que a filantropia serviria para limpar seu nome. Até que funcionou.


Ford é outro grande nome que aderiu ao modelo da filantropia, aprimorando suas engrenagens e profissionalizando sua ação, tendo orçamento maior que organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por exemplo. Interessante observar que a fundação de Ford era voltada para a economia de mercado e contra o autoritarismo soviético, evidenciando também a sua faceta política.


Após o incêndio do Museu Nacional, ouviu-se muito que havia interesse em doar recursos para a sua reconstituição, mas os doadores não sentiam segurança em destinar recursos para uma instituição em estado famélico, que não poderia garantir a correta aplicação do donativo.


Os endowments surgem, nesse contexto, para não deixar os famintos avançarem no banquete. Mas o problema brasileiro não é somente lidar com os que têm fome. A elite brasileira também não está preparada para fazer donativos por aqui. Lily Safra, que já é filantropa assídua, doou cerca de R$ 88 milhões para a reconstrução da Catedral de Notre-Dame.


Para ilustrar melhor esse fato, vale descrever uma cena que mostra exatamente como é pensar o endowment para a nossa realidade: ao vivo na Globonews, o diretor do Museu Nacional indagado sobre essa doação da bilionária brasileira, respondeu algo do tipo: “Lily, doe R$ 87 milhões para Notre-dame; e doe R$ 1 milhão para o Museu Nacional! Apenas R$ 1”!


É evidente que os endowments operam dentro da lógica de mercado e reafirmam a sua importância. Aliás, nem existiria filantropia se não fosse essa lógica. A questão é que esse sistema gera uma bolha de exclusão daquilo que não está alinhada à “missão” estabelecida pelos financiadores desse sistema.


A ideia de um fundo que garanta sustentabilidade financeira é, sem dúvida, excelente, mas é necessário operar noutra lógica, que privilegie o comum, o interesse coletivo, fazendo cumprir a função social dos museus.

*Mário Pragmácio é professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional

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