No cenário atual do nosso ecossistema cultural, a participação social dos indivíduos e das coletividades, até pouco tempo invisibilizadas, é evidenciada como uma força dinâmica e potencialmente transformadora, pois desafia posições e paradigmas há muito estabelecidos, favorecendo criação de novas “arquiteturas sociais”.
Esses novos atores ou agitadores culturais trazem consigo o desejo de verem as suas referências culturais presentes no rol dos bens culturais positivados como patrimônios culturais ou publicamente reconhecidas como “manifestação da cultura” nacional, estadual ou municipal, seja por meio de processos de tombamento ou registro ou por meio da edição de leis específicas de origem legislativa. Nesse contexto, essas referências culturais não representam, apenas, um legado do passado a ser protegido por esses novos atores e coletividades, mas uma força vital para a construção de um novo futuro mais inclusivo, diverso e equitativo, intrinsecamente ligada ao tecido social, moldando e transformando interações, relações de poder e perspectivas de mundo.
Ao reconhecer e valorizar as diversas expressões culturais dentro de uma sociedade, podemos “construir pontes” entre diferentes grupos, promovendo o respeito mútuo e a compreensão intercultural.
Isso é particularmente relevante em um mundo globalizado, onde o contato entre culturas é inevitável e a coexistência pacífica requer uma capacidade de tolerância das diferenças, que são apreciadas e acolhidas durante um processo equivalente a uma “longa conversa”, sem negar com isso os momentos de tensão e acaloramento que certamente também se farão presentes. Mas é inquestionável a fundamental importância da diversidade cultural para a promoção da coesão social e para a construção de comunidades mais autônomas e resilientes.
Ante ao exposto e para além dos atos administrativos do tombamento e do registro ou da (má) prática legislativa de edição de leis específicas de reconhecimento cultural, destaca-se o processo de realização de inventários participativos como alternativa viável para a promoção da reflexão sobre que referências culturais os indivíduos e as coletividades desejam evidenciar, por meio da identificação das suas relações com essas referências e da verificação se essas devem ser mantidas ou ressignificadas a partir de um processo crítico e autônomo, cujos protagonistas são os próprios indivíduos e coletividades.
Sônia Florêncio e Fernanda Biondo ressaltam que o processo do inventário participativo considera “a comunidade como protagonista para inventariar, descrever, classificar e definir o que lhe discerne e afeta como patrimônio numa construção dialógica do conhecimento acerca de seu patrimônio cultural”. Bem como ainda observam como essencial “o entendimento de elementos como território, convívio e cidade como possibilidades de constante aprendizado e formação, associando valores como cidadania, participação social e melhoria de qualidade de vida”.
Assim, o inventário participativo é um processo que pode ir muito além da máxima do “conhecer para preservar”, sendo uma ação cultural “para transformar”, guardando forte relação com o desenvolvimento sustentável.
Segundo Varine, ao se pensar “desenvolvimento sustentável” ou o desenvolvimento local, deve-se levar em consideração, pelo menos, as seguintes dimensões: econômica, social, ambiental e cultural. E ainda segundo ele, esse desenvolvimento deve ser promovido a partir dos “atores locais”, pois não se pode fazer nenhum desenvolvimento sem levar em conta os ritmos da vida local, que fazem parte integrante da cultura viva da população. Bem como ressalta que esse desenvolvimento sustentável só é possível quando se trata de um processo voluntário, fundado na mudança cultural, seguido das mudanças sociais e econômicas.
Nesse sentido, mais uma vez, é possível evidenciar o potencial do inventário participativo para atender aos novos atores que despontam no nosso ecossistema cultural e que anseiam pela visibilização de suas referências culturais, sem renunciar ao seu protagonismo, autonomia, uma construção crítica dessas referências e de suas realidades sociais.
Para além de uma reflexão meramente especulativa, importa destacar os processos de inventários participativos empreendidos na Paraíba, em Pernambuco e em São Paulo. Na Paraíba destacam-se dois processos: o “Memórias Ribeirinhas: Porto do Capim”, cujo tema em destaque é a reafirmação do modo de ser e viver dessa comunidade e o processo de urbanização e poluição do meio ambiente e a formação do “Museu Comunitário Vivo Olho do Tempo”, promovido pela Escola Viva Olho do Tempo, onde são evidenciados os debates sobre o modo de ser e viver, a preservação da memória das mestras e mestres da cultura local e o processo de poluição do meio ambiente que impacta as referências culturais das comunidades do Vale do Gramame.
Em Pernambuco é possível destacar o processo “Novas (velhas) Batalhas”, no qual as comunidades escolares do Recife e de Itamaracá que habitam ou se relacionam com o conjunto arquitetônico das fortificações do período colonial, refletiram sobre as novas lutas sociais e culturais para existir e resistir, manter a memória local, bem como combater o avanço predatório da especulação imobiliária e da poluição ambiental.
E, por fim, o processo do “Minhocão contra a gentrificação”, que acontece em São Paulo, cujo debate se deu em torno da reapropriação e ressignificação do centro urbano para a população residente do entorno.
Todos esses processos foram marcados pela provocação e promoção de autonomia, do protagonismo e do pensamento crítico dos indivíduos e coletividades envolvidas, favorecendo a identificação e reflexão sobre suas referências culturais, na mesma medida que criou condições para a formação de movimentos de reorganização social para luta e resistência frente a processos externos de degradação ambiental (rural e urbana) e de gentrificação social.
Apesar deste potencial positivo do processo de inventário participativo, afasta-se a ideia de que represente uma “panaceia para todos os males”, principalmente porque o seu desenvolvimento apresenta desafios que não podem ser ignorados: é metodologicamente exigente; trata-se de um processo longo; deve ser repetido em intervalos regulares; demanda um grande esforço para efetivamente garantir o protagonismo e a autonomia dos atores locais frente a participação dos “agentes patrimoniais” (técnicos) que possam estar envolvidos, garantindo o direito de decisão dos atores locais; o cuidado quanto a possíveis processos de exclusão de grupos e narrativas; bem como a atenção para não fomentar o aumento do acirramento de conflitos internos (embora as tensões sejam inevitáveis).
Em suma, considerando elementos contra e a favor do processo de inventário participativo, é que os resultados das experiências realizadas apresentam mais pontos positivos do que negativos, fazendo crer que seu desenvolvimento favorece uma prática social reflexiva e crítica nos espaços de vida das pessoas, sendo uma estratégia poderosa para transformar algumas “arquiteturas sociais, econômicas e políticas”. E essas transformações oportunizam vislumbres de novos mundos possíveis, nos quais a centralidade da cultura é efetivamente percebida como fundamental.
*Aramis Macêdo, historiador, gestor cultural, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais e membro do Ponto de Cultura Clube Carnavalesco Mixto Seu Malaquias
Referências:
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