É desarrazoado comparar o atual governo brasileiro ao nacional-socialismo de Hitler ou ao fascismo de Mussolini? Um tanto. Esses regimes perseguiram e eliminaram opositores de maneira organizada e contínua, fabrilmente. Contudo, ações autoritárias cometidas pelo governo Bolsonaro muito se infundem em Estados totalitários, inclusive nos citados.
Quiçá o mais encenado tenha sido o pronunciamento feito em janeiro de 2020 pelo então secretário da Cultura, Roberto Alvim. O fato, que causou reações imediatas de repúdio e que derrubaram Alvim, teve como inspiração o ministro da propaganda nazista de Hitler, Joseph Goebbels. Frases, estética, trilha sonora, ambiência, tudo evocou, sem entrelinhas, o discurso do ministro nazista, realizado em maio de 1933, com a ascensão do partido nazista ao poder. Quase um plágio; ou citação incidental.
Aliás, Goebbels promoveu uma queima de livros de autores que não se enquadravam à ideologia nazista: obras de Stefan Zweig, Thomas Mann, Sigmund Freud, dentre outros tantos, transmutaram-se em cinzas. O governo hitlerista continuou sua sanha de encalço a artistas deliberadamente. Em mostra realizada em julho de 1937, tanto pinturas e esculturas, quanto gravuras, desenhos e tomos foram expostos como “arte degenerada”, por serem considerados ofensivos e impuros, em desacordo com as propostas do nacional-socialismo. Sem contar os incalculáveis artistas confinados em campos de concentração. Não há espaço nesse texto que atenda a isso.
Quem sabe o recalque ou o ressentimento de Hitler, causados pela rejeição da Academia de Belas-Artes de Viena a seu ingresso na primeira década de do século XX, duas vezes, tenham sido molas propulsoras. Entretanto, o acossamento à arte e à cultura foi e é ferramenta onipresente nos Estados autoritários e em ditaduras mundo afora.
Ópera Estatal de Viena, Adolf Hitler, 1912. Domínio público
Ações semelhantes acontecem no governo Bolsonaro, mutatis mutandis. Ao apresentar modificações e novas regras à Lei Rouanet; ao paralisar repasses à Agência Nacional de Cinema (Ancine); ao retirar patrocínios para projetos culturais realizados por empresas públicas, o bolsonarismo acerca-se tanto de regimes totalitários. Ao propor a taxação de livros, numa queima metafórica de imprescindível ferramenta de emancipação educacional, o atual governo dificultará notadamente o acesso das camadas mais pobres da sociedade ao conhecimento contido nos mesmos. Fazê-lo, no Brasil, não é outra coisa senão uma expressão autoritária.
Todavia, antes que sejam taxados, valeria a pena que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, patrono da sugestão da tributação e tão preocupado com a economia – a privada em detrimento da pública –, venha a tornar-se leitor. Sua imagem de bibliófobo é anterior à polêmica taxação. Em “live” transmitida a partir de seu gabinete, viu-se o quão inóspitas são suas prateleiras.
Modestamente, recomendaria alguns livros ao senhor ministro, e a quem aprouver, para compreender a óbvia função dos alfarrábios. Terry Eagleton, em “Como ler literatura” (L&PM Editores, 2019) sugere, em um guia, podermos mergulhar em obras literárias clássicas e tirar delas compreensões que ampliam sobremaneira nossos horizontes. Robert Darnton e Roger Chartier abastecem os leitores com trabalhos brilhantes sobre a história do livro e da leitura. O primeiro, em “Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura” (Companhia das Letras, 2016) e em “Questão dos livros: Passado, Presente e Futuro” (Companhia das Letras, 2010), ensina como a censura é instrumento dos Estados para controle da expressão literária (não só do Brasil 64 do nostálgico presidente-capitão), e como a propagação dos livros digitais não causaram a morte do livro físico, mas sua redenção (ver, igualmente, Umberto Eco, em “A memória Vegetal”; e em “Não contem com o fim do livro”, ambos da Record, 2010). Chartier também o faz em “A aventura do livro: do leitor ao navegador” (Unesp, 1999) e em “A história ou a leitura do tempo” (Autêntica, 2015). Ademais, o historiador francês apresenta a relação do livro com o teatro em “Do palco à página” (Casa da Palavra, 2002), e a conexão entre autor e editor em “A mão do autor e a mente do editor” (Unesp, 2014) (indispensáveis Ler e escrever, de V.S. Naipaul; e “Memórias de um editor”, de Kurt Wolff, ambos pela Editora Âyiné, 2018). Para ficar em poucos exemplos.
O que talvez mais cause espécie em Guedes, caso atenda às minhas alvitradas, seja “A arte de ler”, de Michèle Petit (Editora 34, 2010). Nessa obra, a antropóloga francesa instrui como “resistir à adversidade”; (nobilíssimo subtítulo do livro) pelo hábito de ler. A pesquisadora demonstra, através de seus contatos com mediadores culturais em diferentes países, sobretudo na América Latina, e no Brasil, a importância da leitura para moradores de regiões periféricas na busca de suas emancipações. Ao contrário do que imagina o ministro, o livro não é só buscado pelas elites. Ler é, como pode-se aprender com Petit, "poderoso instrumento de resistência ao caos interior e à exclusão social”.
Finalmente, para preencher o vazio das estantes e das mentes bolsonaristas que vislumbrarem a conversão íntima ao Estado Democrático de Direito, eis a receita, entre nós: Machado de Assis, Clarice Lispector, Drummond, Maria Firmina dos Reis, Jorge Amado, Milton Hatoum, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, João Cabral, Manoel de Barros, Mário de Andrade, Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Luís Gama, Marina Colasanti, Moacyr Scliar, Cecília Meirelles, Stela do Patrocínio, José de Alencar, Bandeira, Quintana, Érico e L. F. Veríssimo, Rachel de Queiroz, Conceição Evaristo, Otto Lara, Lima Barreto, Carolina de Jesus, Cora Coralina, Millôr Fernandes, Castro Alves, Oswald de Andrade, Augusto dos Anjos, Simões Lopes, Sérgio Vaz, Lygia Fagundes, Ariano Suassuna, Murilo Mendes, Ruy Castro, Raduan Nassar, Vinícius de Moraes, Pedro Nava, Rachel Jardim, Aluísio Azevedo, Hilda Hilst, Nelson Rodrigues, Álvares de Azevedo, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Gregório de Matos, João Ubaldo, Cruz e Souza, Adélia Prado, Gonçalves Dias, Monteiro Lobato, Abdias Nascimento, Milton Santos, Sérgio e Chico Buarque. Para começar.
Boa leitura!
Yussef Campos
Professor da Universidade Federal de Goiás, bibliômano e aprendiz de bibliófilo. É autor do livro Palanque e Patíbulo: o patrimônio cultural na Assembleia Nacional Constituinte (Palavrear, 2ª edição, 2019), dentre outros escritos.
Comments