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Multilinguismo no país da ABL



Historicamente somos inclinados à lusotopia, não obstante lusófonos. Explico. Formamos um lugar que já foi português, a partir de uma invasão que nos deixou marcas indeléveis. Entretanto, apesar dos séculos de exploração, subjugação e da imposição de uma língua, conseguimos nos manter poliglotas e multilinguistas. Apenas precisamos desgraduar o português diante dos demais idiomas brasileiros.


Visto isso, podemos encarar a eleição de Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras como um sopro de esperança nesse país, onde a minoria branca detém o maior número de funções técnicas, artísticas, políticas, acadêmicas, sociais, etc., etc., etc. Viva! Assim como o novo imortal, Sônia Guajajara (Ministra dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana (presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Célia Xakriabá (Deputada federal – PSOL/MG), Myrian Krexu (primeira cirurgiã cardiovascular indígena do país), Fernanda Kaingáng (jurista e primeira indígena mestra do país), Gilson Ipaxi'awyga Tapirapé (primeiro professor indígena da Universidade Federal de Goiás/UFG), dentre outras e outros, através de muita luta e diante um sem número de objeções, vêm, junto a outros movimentos sociais, quebrando o monopólio branco das representatividades no Brasil. Corroboram com isso Silvio de Almeida (Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania) e Anielle Franco (Ministra da Igualdade Racial).


Apesar de serem dados positivos, ainda é muito pouco diante da magnitude e potência dos movimentos sociais. Se retomarmos a ABL, quantos são os brancos para representar o português frente a alteridade que representa quase três centenas de línguas, suas e de seus parentes? Além das mais de duas centenas de línguas indígenas, há línguas de imigração, de sinais, afro-brasileiras, além das variedades do português.


Para ilustrar esse cenário, relato uma das experiências mais enriquecedoras nesses tantos anos de salas de aula. Na Universidade Federal de Goiás, onde leciono na Faculdade de História, pude participar de um dos semestres letivos do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena com o tema contextual Patrimônio Cultural.


Junto a mim estavam seis estudantes indígenas, o que pode sugerir um grupo enxuto, mas que, se pensarmos do ponto de vista linguístico, éramos sete pessoas com seis diferentes línguas e/ou dialetos. As línguas indígenas no Brasil se organizam em dois grandes troncos (Tupi e Macro-Jê), subdivididos em famílias; essas por línguas, e essas por dialetos (visite o site do Instituto Socioambiental para conhecer melhor). Em nossa sala de aula, eu era o único com língua materna portuguesa. Os seis indígenas, cinco do tronco Macro-Jê, se dividiam em dois Xavantes e um Xerente (cujos dialetos advêm da língua Akwén, da família Jê), uma Inỹ, (de língua e família Javaé), um Krahô-Mehin (de língua Timbira, família Jê); e um Kalapalo (de família Karib, não associada a nenhum dos dois troncos). Um universo reunido em uma sala de aula, no âmago do Brasil profundo, denso como suas raízes.


Isso serve para que reflitamos sobre vitórias, dentro e fora do campo político: elas são marcantes, mas nem sempre definitivas. Precisamos nos manter vigilantes na luta para a sua manutenção.


Vejamos o marco temporal. Tão polêmico e por anos arrastado no Supremo Tribunal Federal, acabou sendo lá derrubado. Mas seus entusiastas encontraram espaço para, no Congresso Nacional, reavivar as fagulhas da fogueira ainda crepitante.


Em razão disso, creio que o presidente da República erra, ao ser questionado sobre representatividade, quando dá a entender que já admitiu essa demanda ao indicar ministras e ministros que fogem à hegemonia branca e masculina, e que, prontamente, estaria livre da responsabilidade.


A ação de inclusão de não brancos, de outros gêneros além do masculino, em altos cargos públicos, não se confunde com a formação de um gabinete de curiosidades, que se sustenta com a presença de escassos representantes das mais variadas culturas. Ao contrário; deve ser uma política pública com expectativa de consolidação, representação e paridade, tanto em cargos políticos como nas perspectivas de emancipação política. Ecoo: apenas indiquei múltiplos grupos indígenas para apresentar uma inversão da proporcionalidade de ocupação de cargos e espaços. Se fosse tratar aqui da incomensurável diversidade brasileira, teríamos um longo e detalhado texto que enumeraria os tantos males que a nós são acometidos pela colonização dos invasores europeus, e não esgotaria o tema.


Krenak é, há décadas, reconhecido por seu engajamento nas causas indígenas, bem como Raoni Metuktire, Davi Kopenawa, Tuíre Kayapó, Marcos Terena, dentre tantas e tantos. As novas gerações que têm em Daiara Tukano, Eloy Terena, Txai Surui, Bitaté Uru-eu-wau-wau, Alice Pataxó, Geni Nuñez, Leomar Wahine, uns poucos exemplos entre muitos, já vêm ressoando suas vozes e gritando suas reivindicações.


Assim, a própria pluralidade de suas línguas, de suas culturas, de suas existências, que não existiriam e nem existirão sem seus territórios, já é argumento suficiente para enterrar de vez o descalabro do marco temporal.


Em tempo; para o STF há lista ilustrativa, dentre mulheres indígenas ou negras, passíveis de indicação: Joenia Wapichana, Fernanda Kaingáng, Adriana Cruz, Manuellita Hermes, Lívia Vaz, Lucinéia Rosa, Vera Lúcia Santana e Mônica de Melo.


Yussef Campos, historiador e professor da Universidade Federal de Goiás

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