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No meio do caminho tinha uma estátua, tinha uma estátua no meio do caminho

Atualizado: 5 de ago. de 2020

[...]

Respeitem meus cabelos, brancos

Chegou a hora de falar

Vamos ser francos

Pois quando um preto fala

O branco cala ou deixa a sala

Com veludo nos tamancos

(Respeitem meus cabelos brancos – Chico César)


Rodrigo Vieira

(Investigador Visitante em Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UFERSA/Coordenador do DiGiCULT – Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da UFERSA)

Texto concluído em: 24.06.2020


Mais uma estátua, deu no jornal. O Museu de História Natural dos Estados Unidos vai retirar de uma de suas entradas o monumento dedicado a Theodore Roosevelt, 26º presidente norte-americano. Finalmente, descerá do cavalo que o suporta acima do índio e do negro que estão em cada um dos seus lados. Uma imagem de superioridade. Quase três anos depois dos acontecimentos em Charlottesville, as estátuas dos líderes confederados sulistas que defenderam a escravidão na Guerra Civil Norte-Americana se encontram ao chão em Richmond, estado da Virgínia. Nessa cidade, a escultura de Colombo foi dilapidada, arrastada e incendiada. Em Boston, o navegador não teve tanta sorte, foi decapitado. O município de Ohio que leva o nome do genovês tratou rapidamente de retirá-lo de cena.

No Reino Unido, em Oxford, o colonizador britânico Cecil Rhodes em breve não figurará mais na entrada do Oriel College. Comerciante de escravos no século XVIII, o escocês Robert Milligan já não tem mais sua imagem em Londres. O inglês Edward Colston, mercador de pessoas escravizadas no século anterior, se encontra assombrado pelas almas atiradas de seus navios, em Bristol, após ter sua estátua derrubada e deslizada rio Avon abaixo.

Pedestal vazio da estátua de Edward Colton, em Bristol, no dia seguinte aos manifestantes que a derrubaram e a rolaram no porto. O chão está coberto de cartazes do Black Lives Matter.

Foto: Caitlin Hobbs


Nem Churchill, reverenciado como herói da Segunda Grande Guerra e democrata, escapou das pichações, que trouxeram ao debate público a visão imperialista inglesa e de superioridade sobre os povos colonizados. Na Nova Zelândia, ex-colônia britânica, a estátua do Capitão John Hamilton, acusado de assassinar Maoris no século XIX, foi recolhida. Seja na cidade inglesa de Poole, ou em Coimbra, a imagem de Baden-Powell, fundador do escotismo, denunciado por simpatia com o nazifascismo, foi atacada.


Em toda a Bélgica, as esculturas de Leopoldo II, antigo rei responsável pela escravização e exploração dos recursos e do povo congolês, cujo reinado é marcado pela desumanização de mulheres, homens e crianças exibidos em “zoológicos humanos” (algo que incrivelmente sobreviveu até 1958), são pichadas e retiradas de espaços públicos.


Em Lisboa, a figura do Padre Antônio Vieira amanheceu um dia com o dizer em vermelho: “Descoloniza”.


A lista só cresce. Até o final da semana poderia gastar mais duas páginas a relatar episódios semelhantes. A morte do norte-americano negro George Floyd pelo policial branco de Minneapolis, Derek Chauvin, foi a gota d’água para a eclosão de protestos e movimentos antirracistas em todo o mundo. A violência policial, só aparentemente local, ganhou proporções globais. Isso porque o racismo está, infelizmente, no sustentáculo do capitalismo das sociedades que se apoiaram no colonialismo histórico e, hoje, segundo a denominação de Maldonato-Torres[i], perdura e sobrevive na colonialidade, padrões de poder que estão para além das relações de dependência econômica entre metrópole e colônia/centro-periferia, que no neoliberalismo ganhou outros patamares.


De repente, as marcas da memória do passado como monumentos e estátuas que, em geral são indiferentes para transeuntes, namorados e esportistas em praças, prédios e edifícios, quando mais excelentes alvos de pombos, outras aves e bichos, passaram a ser objeto de forte contestação e debate nos meios de comunicação e um incômodo para elites e classes dominantes nostálgicas, ou nacionalistas extremados, que em regra nem se importam com a conservação dessas imagens ou quando são destruídas.


Mas o racismo é um tabu suficiente a mobilizar os discursos em defesa de um patrimônio para os quais, se não fosse o peso do “ego” europeu, como diria Dussel[ii], praticamente deixariam a continuar a agonizar no esquecimento, ou no se fazer de desentendidos quanto às vozes dissonantes que gritam neste debate sobre as manchas que essas estátuas carregam. Nesse sentido, o incômodo com o antirracismo tratou rapidamente de substituir o Black Lives Matter por um expediente supostamente mais universalista de que Todas as Vidas Importam. Organizações e pessoas se ocultam na cortina apenas para se contrapor aos movimentos de denúncia do racismo em razão de uma hipersensibilidade ao tema, não porque se importam com a violência humana. Das vidas passaram às estátuas.


Palavras frequentemente usadas para criminalizar manifestantes como vandalismo e suas variantes voltam a aparecer no debate público. As críticas aos protestos tendem a marcar um acento negativo no antirracismo bem mais que no racismo, invertendo os polos, chegando a aparentar que constitui uma ameaça muito maior à integração social de sociedades que alimentam a ideia de que somente o Outro possui um marcador étnico, todo o resto de Nós não[iii] (É mais comum o estranhamento com burcas, turbantes e véus do que com a indumentária do paletó, para dar um exemplo aparentemente habitual e ordinário). A criminalização de movimentos antirracistas como terrorista é o próprio sinal da perpetuação do racismo.


A resposta sob o prisma do legalismo, em um sistema econômico no qual as coisas valem mais do que vidas, é de certo bem simples e objetiva (é crime destruir o patrimônio!), mas talvez não consiga alcançar a pergunta central: afinal, o que essas atitudes querem nos dizer? Nema solução simplesmente jurídica permite nos pormos outras tão necessárias: Por que a destruição dos monumentos causa maiores reboliços do que o racismo? Por que a estátua de um traficante de escravos se afogando em um canal em Bristol choca mais do que as dezenas de mil vidas anônimas sufocadas na travessia do Atlântico em um de seus negócios “legais” à época? Parece que quanto mais distante temporalmente da barbárie, menor a empatia com o Outro, não nos enxergamos responsáveis, o assunto se torna proibido. Dá a aparência que o genocídio na modernidade ocidental é um fenômeno pontual e isolado que ultrapassamos no século passado. Esconde-se ainda nas qualidades estéticas de bustos e esculturas, na autoria e na autenticidade – vezes extremamente contestáveis – para justificar sua manutenção.


A retórica da perda aparece como heroína do patrimônio, salvadora da história contra o esquecimento, quando na verdade encobre as ausências e os silêncios impostos que a representam na praça com aspecto inofensivo.

Em verdade, os atos insurgentes são similares a instantes de ruptura como revoluções, ou a queda de sistemas autoritários, nos quais os ícones dos antigos regimes são derrubados não apenas no aspecto material, mas igualmente no simbólico. Entretanto, não se pode igualar a reação do oprimido com a do opressor, e que ainda que não haja nenhuma simetria nessa relação, é possível mesmo encontrar nesses momentos reivindicações para preservação e conservação do passado, de modo a ressignificá-lo ou ressemantizá-lo. Daí porque não se pode cair na tentação de qualificar os atos como simplesmente iconoclastas, ou compará-los a fundamentalismos religiosos ou extremismos de ordem política. Não obstante, substituir ou destruir também é fazer história.


Além disso, não se pode esquecer que estátuas e monumentos dessa natureza cultuam personalidades e seus feitos, são memórias selecionadas sobre indivíduos, referências culturais para quem as erigiram e formularam. De outro modo, o culto moderno aos monumentos[iv] reconhece valores de vestígios materiais que estão associados à exaltação dos denominados grandes vultos, grandes homens, sobre fatos memoráveis e excepcionais.


No curso do processo histórico do colonialismo, a formação do Estado-nação incorporou como um de seus principais elementos a construção de identidades nacionais que enaltecessem as glórias dos antepassados. No caso da modernidade ocidental europeia, o cordão umbilical desse nascedouro e dessa consolidação está atado em um nó baseado na conquista e na dominação advindas com as migrações transatlânticas e na exploração da mão-de-obra escrava. Mesmo após o fim do colonialismo histórico ou a abolição da escravidão, as ex-colônias continuaram a mimetizar a história dos vencedores e das elites locais, procurando traços de aproximação com o colonizador europeu, na própria constituição do acervo de seu patrimônio cultural.


Então, a naturalização do racismo com a preocupação se estátuas de racistas se mantêm ou não de pé, é nada mais nada menos do que a continuação da sobrevalorização dos bens culturais de pedra e cal de traços europeus, e a subalternização permanente do patrimônio dos esquecidos e invisibilizados. Onde estão as representações das lutas dos cativos? Das fugas? Das insurgências e levantes? Onde estão representados nas praças públicas os movimentos antiescravatura, abolicionistas e anticolonialistas? Onde estão os ausentes?


Para me valer mais uma vez de Dussel[v], o verbo encobrir é conjugado desde a chegada do colonizador. O des-cobrimento foi um en-cobrimento e continua a sê-lo como na negação do racismo.


O poder da colonialidade sobre a história de colonizadores e colonizados está na constituição de uma memória oficial que transmite uma narrativa única da qual estátuas e monumentos são excelentes porta-vozes e oradores. O choque que comove e emociona suscetibilidades mal resolvidas das elites e grupos dominantes do sistema-mundo capitalista moderno/colonial, segundo expressão de Grosfoguel[vi], esconde o apagamento de corpos, espiritualidades, vidas e vestígios materiais da existência de povos que foram exterminados ou esquecidos sem direito à memória, condecorações e homenagens futuras. O futuro foi deles subtraído, transformado em dívida, adestramento ou docibilidade.


Se não isso, os vestígios foram deslocados, retirados, subtraídos e espoliados para que um dia, depois de muito esforço e economia, o habitante do mundo subalterno possa viajar e visitar as antigas metrópoles, e conhecer fragmentos de seus antepassados, como se fosse algo distante a ser negado, irreconhecível. Reside aí a atualidade da discussão sobre repatriação de bens culturais.


Algo que chama atenção na insurgência dos antirracistas é ponto frequente nas rodas das discussões sobre patrimônio cultural, cujos pilares se erigiram inicialmente na constituição de acervos de bens culturais que destacassem a presença e as marcas dos colonizadores. As manifestações, ao contrário, trazem à tona o questionamento de grupos e populações que se perguntam o porquê dos seus patrimônios não estarem protegidos, salvaguardados ou lembrados em praça pública. A ausência.


Uma breve olhadinha no conjunto tombado de bens materiais integrantes do patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)[vii], nos dá essa dimensão: uma seleção e separação dos bens merecedores de proteção, diferenciando-os das expressões da cultura sem excepcionalidade, despidas de autenticidade ou não vinculadas a fatos vultosos, notáveis e memoráveis de personagens históricos relacionados à demonstração de poder desses atores.


No Brasil, refiro-me a práticas preservacionistas de matriz europeia, calcadas exclusivamente em bens corpóreos (bens arquitetônicos, monumentos, bens arqueológicos etc.) e instituições que cumprem a função de lugares de memória (museus, arquivos etc.), ainda que este período tenha sido denominado pedra e cal (e beletrista), pejorativamente, por se notabilizar na proteção de bens do passado colonial brasileiro, mormente do colonizador branco, do período barroco mineiro, e dos pertencentes à Igreja Cristã Apostólica Romana, excluídas a manifestações e expressões culturais de vários grupos formadores da sociedade brasileira, como povos indígenas, negros e comunidades rurais tradicionais. Não obstante as iniciativas existentes no próprio IPHAN em sentido inverso, ainda que incipientes, que só vieram a ganhar corpo após a Constituição de 1988 e a regulamentação do instrumento de salvaguarda de bens intangíveis chamado Registro[viii].


A gestação de conceitos jurídicos como a de patrimônio cultural imaterial ou a incorporação dessa dimensão na noção de patrimônio moderno é em si uma tentativa contrahegemônica de reconhecer e valorizar de bens culturais vilipendiados pelo esquecimento e pela barbárie colonizadora[ix]. Há uma introdução de noções de referenciabilidade, reconhecimento e valoração distintas das motivações pelas quais se punham estátuas em espaços públicos. Uma das pedagogias desses atos é ensinar que a atribuição de valor a bens culturais é algo que nas democracias deve vir da diversidade dos que estão ainda abaixo, e não dos intelectuais iluminados e dos donos do poder.


Os protestos ecoam vozes de narrativas contrahegemônicas do presente que desafiam o passado colonial. Os valores e discursos dos antirracistas não estão, nem devem ser colocados sob o mesmo patamar dos racistas ou dos nacionalistas supremacistas. Seria como aceitar suas premissas como válidas.


Há quem reclame da indisponibilidade dos manifestantes para o diálogo. Mas, seguindo novamente Dussel[x], como exigir que o Outro excluído possa participar de um ambiente de conversação no qual já se nega a priori a possibilidade de uma intervenção racional, assim como não se reconhece as assimetrias entre ele e o Outro conquistador? Como falar sobre racismo em condições assim?


Em sua concepção dialética da cultura[xi], anti-historicista, Walter Benjamin[xii], em sua Tese VII, nas Teses sobre o conceito de história, afirmava já que “não há nenhum documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. O que a “vandalização” das estátuas apresenta é, em seu pensamento, a história sendo escovada a contrapelo. A história da cultura, para o pensador frankfurtiano, não está dissociada das condições materiais, sociais e políticas. “O momento destruidor” dos monumentos, em verdade, evoca a escrita de uma história dos vencidos, “sem nenhuma identificação com vencedor”. Isto é, se trata de um significado da história ampliado, no qual a cultura produzida pelos vencidos e pelos ausentes propõe novas identificações, assim como a aproximação com o passado não põe para debaixo do tapete a unidade contraditória apontada em sua Tese VII.


Como se vê, nada há de revisionismo histórico na reivindicação dos movimentos antirracistas. A revisão está justamente no ocultamento, no silenciamento e na impossibilidade de se colocar outras interrogações sobre o significado da história a partir de estátuas e monumentos. O que os protestos sinalizam é justamente o contrário.


A rápida reação de líderes europeus e de parte das elites da branquitude do Velho Continente às pichações demonstram que a luta antirracista parece ser desimportante ou menos importante que a representação das glórias do passado colonial. A negação não permite que a própria história se ponha novas interrogações sobre os valores e simbolismos atribuídos aos monumentos, tampouco abre espaço para compreender e dimensionar o quão racismo está institucionalizado e estruturado nas democracias ocidentais. Há uma persistência dos líderes europeus em defender o legado que dizem estar a combater.


O Presidente francês, Emmanuel Macron, rapidamente invocou o republicanismo para, de maneira enfática e categórica, afirmar que o país não apagará sua história, nem “esquecerá de nenhum de seus feitos”[xiii], apesar de ter dito que a França será implacável contra o racismo, o antissemitismo e a discriminação. Acusa ainda alguns de se aproveitarem das manifestações para promover separatismos e revisionistas de “numa odiosa e falsa reescrita do passado”[xiv]. Num tom final afetivo trata as estátuas como recordações. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson[xv], também reagiu às pichações das esculturas de Churchill classificando os atos como edição e censura da história.


Os discursos são paradoxais. Sartre teima com o inferno está no Outro. Se por um lado reforçam disposições para o enfrentamento do racismo, reforçam o paternalismo e o assimilacionismo das minorias e dos imigrantes como requisito sine qua non para uma integração inevitável, divisionando europeus de não europeus, culpabilizando as vítimas, pois aqui parece que as reações antirracistas foram compreendidas sob os aspectos negativos e polarizadores que ameaçariam a incorporação do Outro e a coesão social.


Macron esquece que o berço da República francesa substituiu monumentos de reis por seus símbolos. Nem por isso a história foi apagada. As monarquias continuam objeto da História, nos relatos, nas discussões, nos livros, não precisam de estátuas, embora continuem por aí habitando pontos turísticos. O Exército Vermelho e os Aliados derrubaram suásticas e outros símbolos nazifascistas; boa parte dos países ocidentais proíbe a utilização desses emblemas, nem por isso a história foi apagada. Ao contrário, está aí a nos perscrutar e assustar com o negacionismo do Holocausto, com o crescimento de neonazis e o relativo sucesso eleitoral de partidos de extrema direita, dizendo que ainda não vencemos por completo. A derrubada das estátuas de Stálin nos antigos países da União Soviética foi um marco inaugural para um novo começo; sua destruição ou colocação em museus é fazer história, ao tempo em que ela aparece no interesse crescente sobre a trajetória do líder soviético. A reação dos antirracistas clama por uma história diferente do anacronismo de ícones que não o são mais ou talvez nunca foram.


Também não dá para transferir o debate público sobre o racismo, contestando as pichações, tratando a reação do “descoloniza” como um pormenor, uma atitude individual imputada à moral particular dos agressores de estátuas, tal qual o fez o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa taxando de ignorância e imbecilidade o que fizeram à estátua do Padre Antônio Vieira em Lisboa[xvi], ressaltando as qualidades e virtudes do jesuíta. Marcelo não nega a existência do racismo na sociedade portuguesa, mas é contraditório tratar algo persistente que precisa ser estruturalmente encarado, como ato isolado e sem sentido (ilusão) de extremistas imaturos – quase o estado a que alude Kant para alcançar o esclarecimento (Aufklärung), a culpa da imaturidade e ou da menoridade (Unmündigkeit)[xvii]. Assim, o déficit de compreensão histórica está nesse Outro que não alcançou, todavia, o progresso das luzes.


Para alcançar sensibilidades de forma unânime, em alguma medida, essas manifestações dos chefes de Estado europeus realizaram desvios comparativos com a destruição de prédios e edifícios históricos. Não vou adentrar em questões sobre a arquitetura e os efeitos dessas construções na organização discriminatória do espaço urbano, mas essas respostas dão sinais de que o mito moderno parece ter cumprido com sua missão de transformar os arautos da colonização em deuses incontestes. Essas estruturas em sua maior parte cumprem hoje com outras funções sociais (p. ex. museus, equipamentos culturais, órgãos administrativos) que permitem o deslocamento de seus sentidos originários e a problematização sobre suas origens e organizações. De outro modo, isso não se verifica na mesma frequência com a presença de estátuas de figuras históricas controversas em espaços públicos.


Sem mencionar que o enaltecimento dos retratados nos monumentos muitas vezes se baseia em construções ficcionais que não correspondem aos momentos históricos que pretendem refletir. A República brasileira foi exímia nesse propósito, assim como a cristandade católica.


Não há soluções fáceis para este debate. Embora a reação antirracista seja simbólica, é necessário pensar que tipos de posturas podemos modificar diante do alerta que nos foi dado.


Tal e qual na proposta de Boaventura de Sousa Santos[xviii], um ponto de partida em matéria de conhecimento seria a descolonização cognitiva que envolve tanto colonizados e colonizadores, aqui no sentido de que o termo colonialismo tem hoje uma acepção mais ampla de dominação em outros níveis que não o do processo histórico. O ensino formal da história nas escolas é um começo.


Por exemplo, trabalho de investigação realizado entre 2008 e 2012 em Portugal, sob a coordenação da pesquisadora Marta Araújo (CES-UC), constatou que os livros didáticos portugueses de história pouco tratam sobre a escravatura[xix]. Nos últimos anos, isso nada mudou. Relembro a polêmica em torno da resistência na criação de um memorial para as vítimas da escravidão que será instalado finalmente no Campo das Cebolas, em Lisboa, a partir da obra "Plantação-Prosperidade e Pesadelo", do artista angolano Kiluanji Kia Henda[xx]. Na Holanda, segundo Melissa Weiner[xxi], o ensino da história continua a exaltar o povo holandês como tolerante, porém se esquivando do papel do país no comércio de pessoas escravizadas, mitificando romanticamente a benevolência do colonizador europeu. Vale ressaltar que as antigas colônias muitas vezes adotam esses mesmos livros. A investigadora conclui que isso tem repercussões em políticas públicas paternalistas e integradoras voltadas para os imigrantes, assim aponta que um ensino deficitário nesse aspecto faz com que brancos holandeses sejam limitados no reconhecimento do racismo.


Há alternativas também centradas no deslocamento desses monumentos para museus. É certo que eles podem também trazer narrativas eurocêntricas em exposições, o próprio formato e a organização do equipamento podem ter moldes colonizadores, contudo a mudança do locus da estátua é em si uma abertura de espaço para outras narrativas e questões históricas envolvendo as figuras retratadas.


Os países latino-americanos e africanos que atravessaram experiências de justiça de transição – ainda que por se completar –, mudanças de regimes autoritários para democráticos, também nos trazem o exemplo da construção de monumentos dissonantes ao retrato do heroísmo mítico do colonizador. A ideia dos antimonumentos[xxii], muitos efêmeros ou performances e intervenções ritualísticas, contrasta com a estética da conquista e da dominação presente nessas estátuas. Expõe a existência de outros testemunhos e dos traumas ocasionados não apenas pela história, mas também pelo esquecimento. Assim também, as mudanças de nomes de ruas, escolas, rodovias, que homenageiam torturadores e ditadores são demonstrações do giro provocado, nas democracias, com o não reconhecimento de grupos e povos com referências que nunca foram suas. Para que não fitem ao ir ao trabalho com os algozes de seus parentes, antepassados e ancestrais.


No Brasil, não muito diferente daqui, já se sentem os efeitos dos protestos antirracistas no campo do patrimônio cultural. Começou a circular abaixo-assinado para a demolição da estátua em alusão ao bandeirante Borba Gato. O medo após as pichações e destruições de monumentos em outros países foi tão grande que a Guarda Municipal de São Paulo foi chamada para fazer a vigília da escultura do bandeirante.


Uma coisa é certa que se pode aprender com o Black Lives Matter: a história não é linear, universal e unânime. O patrimônio cultural tem muito mais a contribuir com o combate ao racismo do que perpetuá-lo. Monumentos precisam deixar de ser documentos de barbárie e representar a diversidade[xxiii], dando vez e voz aos excluídos, ausentes e esquecidos da representação no espaço público. Essa mudança é uma tarefa não só dos negros, mas também de nós brancos. É hora do presente. As estátuas são destroços e ruínas de uma memória futura.


[i] MALDONADO-TORRES, Nelson. On the coloniality of being: contributions to the development of a concept. In: Cultural Studies, 21:2-3, 240-270. DOI: 10.1080/09502380601162548. [ii] DUSSEL, Enrique. 1492: el encubrimiento del Otro – Hacia el origen del “mito de la Modernidad”. La Paz: Plural Editores, 1994. [iii] MAESO, Sílvia Rodríguez; SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Compreender as lógicas do racismo na Europa contemporânea: Projeto de investigação TOLERACE Brochura com principais resultados e recomendações. Coimbra: CES, 2013. [iv] RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e origem. São Paulo: Perspectiva, 2014. [v] Op. cit. [vi] GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 115-147, 2008. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/697. Acesso em: 22 jun. 2020. [vii] Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126. Acesso em: 20 jun. 2020. [viii] COSTA, Rodrigo Vieira. O registro do patrimônio cultural imaterial como mecanismo de reconhecimento de direitos intelectuais coletivos de povos e comunidades tradicionais: os efeitos do instrumento sob a ótica dos direitos culturais. Tese de doutorado. UFSC, 2017. 523p. [ix] BENEVIDES, Gilmara. Por que não derrubamos estátuas também? Disponível em: https://www.saibamais.jor.br/por-que-nao-derrubamos-estatuas-tambem/. Acesso em: 22 jun. 2020. [x] Op. cit. [xi] LÖWY, Michel. “A contrapelo”. A concepção dialética da cultura nas teses de Walter Benjamin. In: Lutas Sociais, São Paulo, n.25/26, p.20-28, 2º sem. de 2010 e 1º sem. de 2011. Disponível em: http://www4.pucsp.br/neils/downloads/Vol.2526/michael-lowy.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020. [xii] BENJAMIN, Walter. As Teses sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas, vol. 1, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 222-232. [xiii] Para uma análise discursiva nesse mesmo sentido, ver MEDEIROS, Paulo de. Vendavais (3). In: Memoirs News Letter – FILHOS DE IMPÉRIO E PÓS-MEMÓRIAS EUROPEIAS, #106. 20 jun. 2020. Disponível em: https://memoirs.ces.uc.pt/ficheiros/4_RESULTS_AND_IMPACT/4.3_NEWSLETTER/MEMOIRS_newsletter_106_PM_pt.pdf. Acesso em: 21 jun. 2020. [xiv] SIC Notícias. Emmanuel Macron garante que França não apagará História. Disponível em: https://sicnoticias.pt/mundo/2020-06-14-Emmanuel-Macron-garante-que-Franca-nao-apagara-Historia. Acesso em: 19 jun. 2020. [xv] OBSERVADOR. Estátua de Winston Churchill foi coberta por tábuas, Boris Johnson condena ameaças ao monumento. Disponível em: https://observador.pt/2020/06/12/estatua-de-winston-churchill-foi-coberta-por-tabuas-boris-johnson-condena-ameacas-ao-monumento/. Acesso em: 20 jun. 2020. [xvi] CM. "Ignorância e imbecilidade": Marcelo Rebelo de Sousa arrasa autores de atos de vandalismo no País. Disponível em: https://www.cmjornal.pt/politica/detalhe/ignorancia-e-imbecilidade-marcelo-rebelo-de-sousa-arrasa-autores-de-atos-de-vandalismo-no-pais. Acesso em: 22 jun. 2020. [xvii] SODRÉ, Muniz. Por um conceito de minoria. In: BARBALHO, Alexandre; PAIVA, Raquel (Org). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005. [xviii] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2018. [xix] BBC Brasil. Ensino de História em Portugal perpetua mito do 'bom colonizador' e banaliza escravidão, diz pesquisadora. 31 jul. 2017. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40735234 Acesso em: 20 jun. 2020. [xx] LISBOA. Memorial de homenagem às vítimas da escravatura Disponível em: https://www.lisboa.pt/atualidade/noticias/detalhe/memorial-de-homenagem-as-vitimas-da-escravatura. Acesso em: 20 jun. 2020. [xxi] WEINER, Melissa. O fardo holandês: escravidão, África e imigrantes nos livros de história da escola primária na Holanda. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 17, no 40, set/dez 2015, p. 212-254. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/61052. Acesso em: 20 jun. 2020 [xxii] SELIGMANN-SILVA, Márcio. Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência. In: Psicol. USP [online]. 2016, vol.27, n.1, pp.49-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564D20150011. [xxiii] GIANOLLA, Cristiano; ALMEIDA, Pedro. Heritage “vandalism” and the echoes of silenced memories. Disponível em: https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?id=29969. Acesso em: 17 jun. 2020.

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