
Acreditamos que o reconhecimento histórico do trabalho conjunto de Estados, sociedade civil e indivíduos para se chegar à construção da Agenda 2030, pode nos proporcionar uma chave de leitura importante da criação do 18º ODS (Objetivo do Desenvolvimento Sustentável) da parte do atual governo brasileiro.
Pode-se afirmar que o embrião da Agenda 2030 se deu no início dos anos 1970, com os estudos propostos pelo Grupo de Roma, empresas e indivíduos que se preocupavam com a questão do crescimento econômico e a possível extinção dos recursos naturais.
Nesse contexto foi encomendado um estudo a uma equipe de cientistas do MIT (Massachusetts Institute of Technology) coordenados por Donella Meadows, que resultou no Relatório Meadows, conhecido como Limits to Growth (Limites ao Crescimento), publicado em 1972.
Em 1983, a Assembleia Geral da ONU, criou a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento que, em 1987, publicou o Relatório Brundtland, denominado Our Common Future (ou “Nosso Futuro Comum”), disseminando o conceito de desenvolvimento sustentável.
Posteriormente, vários encontros internacionais foram promovidos (ECO 92, Joanesburgo 2002, Rio + 20, entre outros) com a intenção de trabalhar a interação entre o crescimento econômico e a erradicação da pobreza a partir da conjunção de três fatores: economia, recursos naturais e sociedade, como base para o desenvolvimento sustentável; destacando-se, nesse período, a Agenda 21, produto da ECO 92, que se deu no Rio de Janeiro, em 1992, como importante plano global articulado entre representantes de diversos Estados, além de outros participantes, visando o desenvolvimento sustentável.
Em setembro de 2000, como fruto dos encontros de cúpulas multilaterais realizados anteriormente, nascem os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), em número de oito e com horizonte temporal de 15 anos, cujo foco principal é a redução da extrema pobreza, utilizados como parâmetro internacional para orientação do desenvolvimento locorregional e global.
Nessa perspectiva, a Cúpula das Nações Unidas sobre os Objetivos do Milênio, em 2010, procedeu a uma avaliação dos resultados parciais traçados e alcançados, e a revisão dos objetivos para o pós-2015, que, a partir de um processo de ampla consulta, gestou uma nova agenda de desenvolvimento, culminando, em 2015, após a reunião de 193 Estados-membros da ONU, com a adoção do documento “Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” (A/70/L.1), com o compromisso conjunto de promover o desenvolvimento sustentável até 2030 [1].
Destaca-se aqui, referindo-se ao Preâmbulo do documento: “Esta Agenda é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade. Também busca fortalecer a paz universal com mais liberdade. Reconhecemos que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, é o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável”.
Ainda citando o Preâmbulo da Agenda 2030, trata-se de uma ação cuja colaboração entre todos é essencial para a implementação do plano para alcançar os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e suas 169 metas, que buscam “assegurar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas. São integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental”.
Se já se faz necessário um esforço hercúleo para alcançar os 17 ODS, por quê e para quê um 18º objetivo?
Apesar da abrangência dos 17 ODS, algumas considerações têm sido feitas na esfera internacional e nacional sobre questões que não se consideram alcançadas, ou mesmo destacadas dos objetivos já propostos, em suas metas e indicadores de efetividade [2]. Claro que a inserção entre os já definidos, ensejariam amplos debates e consultas entre os Estados e demais participantes da Agenda 2030.
Todavia, nada impediu que alguns Estados promovam agendas internas para incluir um décimo-oitavo ODS de acordo com suas peculiaridades político-sociais locais, caso aqui do Estado brasileiro que apresentou voluntariamente um 18º ODS – “igualdade étnico-racial”.
Tal proposta implica necessariamente em “definir claramente o objetivo, as metas associadas e os indicadores para medir o progresso”, além do que, uma “estrutura de governança forte é outra pré-condição para a implementação bem-sucedida de um novo ODS. Também necessita adequados mecanismos de monitoramento e revisão, bem como instituições capazes de coordenar e implementar as ações necessárias”. Tudo isto, factível dentro do período de trabalho proposto pela Agenda 2030 [3].
A criação do novo ODS – “igualdade étnico-racial”, adotado voluntariamente pelo Estado brasileiro, é fruto de uma movimentação do Ministério da Igualdade Racial (MIR) em articulação com o Ministério dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e Cidadania, a Secretaria-Geral da Presidência, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico eSocial (BNDES) e o IPEA, e representa um compromisso e desafio para o enfrentamento ao racismo e às desigualdades étnico-raciais, em vistas à promoção dos direitos humanos e ao desenvolvimento humano sustentável nacional.
Apesar de todos os desafios postos com a criação deste novo objetivo, são imprescindíveis iniciativas e ações para o combate ao racismo estrutural e institucional presentes no Estado e na sociedade brasileiros, não tão novos assim, e que se reproduzem diuturnamente.
Assim, a implementação de um ODS 18 no Brasil surge como mais uma iniciativa para enfrentamento dos obstáculos para se alcançar uma justiça social efetiva, além de expor a necessária reflexão sobre o racismo sistêmico que se apresenta diante do mundo globalizado.
Todavia, entendemos que as atividades legiferantes, quer de âmbito nacional ou internacional, as atividades administrativas dos entes públicos internos, os acordos convencionais transnacionais e ações do Judiciário local, são apenas espaços de concessão de um sistema global com “tentáculo” local que continua a valorizar mais o capital do que os seres humanos e os não humanos.
Assim, sempre válido o conselho lúcido de Joaquin Herrera Flores [4], para superarmos estes vícios sistêmicos e alcançarmos uma autêntica justiça sócio-racial, qual seja:
Novos textos de direitos e novas declarações de intenções (sem condições de factibilidade) estão cumprindo uma função alimentada pelos grandes interesses econômicos e políticos da nova ordem global que é eliminar a radicalidade do político, como criação contínua e permanente de cidadania, e afastar o máximo possível os cidadãos dos espaços de decisão institucional.
É preciso repensar o humano, e o sentido da política e da economia para não deixar ninguém para trás na concretude da vida.
Marcus Pinto Aguiar é mediador de conflitos (Nupemec/TJ-CE), advogado, Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UnB/Flacso Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do mestrado em Direito da Ufersa e membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)
Notas:
[1] ONU. Organização das Nações Unidas. Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: <https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/agenda2030-pt-br.pdf>. Acesso em 22.fev.2025.
[2] Achiume, E. T. (2022). A/HRC/50/60: 2030 Agenda for Sustainable Development, the Sustainable Development Goals and the fight against racial discrimination - Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance. United Nations. Disponível em:
<https://www.ohchr.org/en/documents/thematic-reports/ahrc5060-2030-agenda-sustainable-development-sustainable-development>. Acesso em: 22.fev.2025.
[3] MARTINS, Ana Luísa Jorge; SOUSA, Rômulo Paes. Revisão dos debates raciais para agenda 2030: novo ODS 18? Fundação Oswaldo Cruz, julho de 2023. Disponível em: <https://cee.fiocruz.br/?q=Revisao-dos-debates-raciais-para-agenda-2030-novo-ODS-18>. Acesso em 22.fev.2025.
[4] FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.