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O cuscuz como Patrimônio Imaterial da Humanidade - Mas é couscous ou cuscuz ?

“Fais-moi du couscous, chéri

Fais-moi du couscous

Fais-moi du couscous, chéri

Fais-moi du couscous


J'ai trouvé la recette pour décourager

Sa passion secrète qui tient éveillé

J'remplace les pois chiches par des haricots

Et comme je m'en fiche, je jette la semoule au moineaux


C'est plus du couscous, chéri

C'est plus du couscous […]”


(Fais-moi du couscous, chérie – Bob Azzam)




*Imagem: pixel1; CC BY


De repente, não mais que de repente, as redes sociais pipocam de amarelo os feeds, os stories, as postagens. A Unesco havia declarado como patrimônio da humanidade o cuscuz (1). Era o que diziam os jornais brasileiros, acentuando nas fotos a carne de sol ao meio do prato com uma folha de salsinha em cima, ao lado do biquinho que a cuscuzeira deixa em seu formato individual pleno. Nordestinos à flor da pele, comemorando no carnaval virtual. A água na boca e o desejo quase foram suficientes para deixar de pensar e interrogar: "Mas, pera lá, cuscuz? Mas que cuscuz?". No grupo de WhatsApp, amig@s se interrogam da mesma maneira: "É o cuscuz com `z´ ou escrito em francês?" Ou seria mesmo "alcuzcuz" sem o peso do estrangeirismo colonizador? A grafia também importa nessas horas. E outra questiona: "Importa? A origem não é a mesma?". Eis que uma outra responde: "O nosso é de milho, o dos árabes é de sêmola." "Ih, mas tem até à base de mandioca." A confusão estava instaurada.

Os questionamentos são mais do que válidos. Ajudam-nos a tentar entender os efeitos jurídicos de mecanismos de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, demonstrando a importância, mas, também, as limitações e insuficiências do próprio Direito como ferramenta de proteção e promoção desses bens culturais e, por outro lado, são a prova de que a vitalidade e a continuidade desses bens no meio comunitário são os melhores caminhos para sua transmissão entre as gerações.

A primeira interrogação sobre os limites territoriais do reconhecimento da relevância do bem cultural imaterial atormenta não apenas o cenário internacional, mas também a figura do Estado-Nação em si. É o problema do caso brasileiro. Para um bem cultural ser declarado como integrante do patrimônio cultural imaterial (PCI) brasileiro, por meio do Registro, os solicitantes têm que comprovar a relevância nacional no pedido junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. É um requisito material indispensável, de acordo com o Decreto Federal 3.551/2000. (2)

A primeira impressão é que somente o bem cultural imaterial que esteja presente ou seja valorado em/por todo território nacional poderá ser registrado. Essa interpretação é dissonante da Constituição Federal de 1988 (caput do artigo 216) que não faz qualquer distinção discriminatória entre os bens imateriais em razão de sua amplitude, disseminação territorial ou localização geográfica, bastando a demonstração da referência cultural para quaisquer dos grupos formadores do país para que receba algum grau de proteção. Na prática do Registro, há patrimônio imaterial reconhecido que está difundido em diversas regiões e localidades do país, que está presente em número determinado de Estados ou regiões identificáveis. Até mesmo aqueles cujo referente é aparentemente local, é praticado ou produzido em territórios circunvizinhos. As dimensões territoriais do país, a diversidade cultural, o pluralismo e a escolha do federalismo cooperativo como forma de organização do Estado não permitem que se possa enxergar o Registro do patrimônio imaterial como instrumento totalizante de um valor universal de uma comunidade única imaginada como nacional.

O pressuposto da extensão nacional para caracterização da relevância de um bem é tão fictício para o campo do patrimônio cultural imaterial quanto a figura da nação unitária. Em suma, a relevância como critério material afigura-se no peso valorativo atribuído ao bem pelas tensões e interesses gerados entre as partes legítimas do Registro, grupos e comunidades detentoras do bem imaterial e pelas escolhas políticas do IPHAN e do Conselho Consultivo, responsável pela decisão final sobre o reconhecimento e a salvaguarda do bem, no decorrer do processo de Registro (3).

Embora aparente ser uma exigência a priori, na prática, o bem imaterial é alçado à condição de nacional por meio da titulação após o término do processo do Registro. Antes disso, a referência cultural tem outra ou múltiplas naturezas, locais ou regionais. Assemelhando-se ao tombamento nesse caso, um bem cultural imaterial pode ser registrado nas três esferas federativas, podendo simultaneamente ser classificado como de relevância nacional, regional ou local, de acordo com os interesses federativos que recaem sobre o objeto da salvaguarda.

No plano brasileiro, as próprias migrações internas do país e a industrialização fazem com que o cuscuz seja parte da cultura alimentar de pessoas de outras regiões que não a vinculada imediatamente com a tradição do hábito de comê-lo, como a região Nordeste. Daí porque em casa vejo uma gaúcha de Getúlio Vargas apaixonada pelo cuscuz muito mais do que alguém que viu e cresceu com alimento nos cafés da manhã e da tarde sobre a mesa religiosamente.

As fronteiras imaginadas (4) e não respeitadas pelo patrimônio cultural imaterial adaptaram-se no plano internacional. Em vez de fator de distinção da cultura do Outro ou de brigas intermináveis sobre a genealogia do alimento, os países solicitantes da inscrição do couscous na lista do patrimônio cultural imaterial buscaram trabalhar uma cooperação por meio da partilha de um dos comuns entre seus povos. Em vez de rupturas e desentendimentos, laços e afetos a partir de saberes e práticas ancestrais bem presentes nas mesas do Magrebe. A Diretora-Geral da UNESCO, Audrey Azoulay, descreveu esse registro como um sucesso diplomático.

A Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial foi instituída pela Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural de 2003 (5), que incorporou a antiga Lista de Obras Primas da Humanidade da UNESCO. Um dos cinco requisitos para inscrição na lista determina, segundo as Diretivas Operacionais da UNESCO para a Convenção de 2003 (6), a verificação pelo Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da submissão da manifestação da candidatura à consulta prévia e informada de grupos e comunidades detentoras do bem imaterial. De certa forma, esses grupos estão vinculados a uma divisão espacial e territorial constante nos países requerentes. Outro requisito, no entanto, estimula a transnacionalidade quando determina a demonstração de que a inscrição contribua para a visibilidade do PCI, testemunhando a diversidade cultural e contribuindo para o favorecimento do diálogo entre as culturas.

O patrimônio imaterial parece mesmo ter ojeriza a essencialismos, muito embora a apropriação cultural que o mercado faça em torno dos produtos de saberes-fazeres reconhecidos primem pela busca de um autêntico, raro, original, próprio das narrativas patrimoniais da modernidade europeia da alegoria monumental ou da aura da qual falava Walter Benjamin (7). A visibilidade às vezes é positiva, mas o grande receio é a transformação do bem cultural em grife, encarecendo ou tornando inacessíveis matérias-primas ou os resultados dos saberes-fazeres declarados como patrimônio, distanciando-os da sociabilidade pela qual foram salvaguardados.

Nesse sentido, nosso cuscuz é, mas não é, o inscrito na lista. É na medida em que sua travessia pelo Atlântico e a transmissibilidade entre gerações de colonizadores, que introduziram o alimento no Brasil, fez-nos constituir outras sociabilidades, identidades, particularidades e mudanças nas práticas do saber-fazer o produto que o aproximam e o tornam diferente do seu ancestral mourisco. Socioculturalmente, então, sim. Inclusive, para realizar pontes entre as diferenças. Não o é, apesar do registro transnacional, porque a inscrição de "Conhecimentos, know-how e práticas relacionados com a produção e consumo de couscous" limita-se ao georreferenciamento do produto da sêmola nos Estados que requereram sua inscrição como uma herança cultural compartilhada, ou seja, Argélia, Mauritânia, Marrocos e Tunísia. Eis outra fronteira: a do Direito.

Se não assim, há aí pelo menos um padrão de referencialidade. Nesse sentido, a visão de território do Estado-nação ainda parece ser determinante ou, pelo menos, relevante, tanto no reconhecimento de bens culturais imateriais, quanto nas ações, financiamentos de projetos e políticas de salvaguarda. Entretanto, as avaliações de políticas públicas patrimoniais promovidas pelos Poderes públicos de diversos países e por organismos não governamentais independentes, bem como as práticas comunitárias de salvaguarda, vêm modificando a visão institucional de território, incorporando outras cosmovisões de territorialidade mais compatíveis com as mutações e a continuidade dos bens imateriais no espaço-tempo, inclusive reclamando uma maior efetividade dessas políticas a partir desse deslocamento.

Ainda assim, desde o registro da Dieta Mediterrânea, muitas culturas alimentares transnacionais têm solicitado seu reconhecimento enquanto bem cultural imaterial da humanidade, estrategicamente com a assinatura e o endosso de dois ou mais países. Segundo a UNESCO, somente este ano, além do couscous, 16 candidaturas multinacionais foram apresentadas ao Comitê do Património Imaterial dessa organização internacional.

Além das expressões orais e gráficas da Arte Kusiwa do povo Wajãpi, o Brasil possui na Lista Representativa o Samba de Roda do Recôncavo, o Frevo como expressão artística do carnaval de Recife, as festividades do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a Roda de Capoeira e, mais recentemente, o Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão. O Yaokwa, ritual do povo enawene nawe, está em uma outra Lista de bens que requerem medidas de salvaguarda urgentes, desde 2011 (8). A ameaça ao ritual e seu ecossistema está relacionada com as frequentes agressões à biodiversidade local. Como se vê, o cuscuz formalmente não está associado ao patrimônio imaterial de nosso país, muito embora dele faça parte.

Isso responde o segundo questionamento sobre a continuidade ou a manutenção das características do bem cultural imaterial. O couscous, prato berbere do Magrebe (9), mudou para coexistir com o cuscuz e todas as suas variáveis. As mudanças que ocorrem não são decorrentes exclusivamente do passar do tempo, mas dos processos de criação e inovação de transformações do bem imaterial ou de seu uso para o surgimento de novos produtos materiais, que podem ou não ter existência breve, finita, durável, podem nem mesmo ser referências culturais dessas práticas no decorrer do tempo, com seus deslocamentos para outros ciclos autônomos de produção e reprodução cultural.

Em consideração estão todas as transformações e mudanças pelas quais o bem cultural imaterial passou, se novos elementos culturais foram incorporados ou os antigos modificados, se os aspectos significativos que justificavam o reconhecimento desapareceram, se o bem tornou-se referência para outros grupos e pessoas, se as incorporou ou se as afastou ou restringiu sua participação, se há sua transmissão entre as gerações, se há manutenção das condições sociais e materiais de sua produção e reprodução, se há impactos de ordem socioeconômica após o reconhecimento e eventuais políticas de salvaguarda. Por isso, ao contrário do que acontece com frequência nas discussões sobre bens culturais materiais, em certo ponto os debates acalorados sobre originalidade perdem algum sentido. Principalmente aqui quando não se sabe onde nasceu o prato, como se fosse um organismo vivo o próprio cuscuz.

Apesar dos dissensos sobre a sua origem ou as tradições a ele associadas, todos os especialistas chegaram a um único ponto conclusivo em comum na discussão da candidatura: "O melhor couscous é o da minha mãe!". Isso é porque nunca foram comer o cuscuz da minha em Fortaleza, regado ao leite de coco ainda morno. Fica o convite, Pós-Covid, com tod@s vacinad@s e segur@s!


Rodrigo Vieira

(Investigador Visitante em Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UFERSA/Coordenador do DiGiCULT – Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da UFERSA)


(1) UNESCO. Unesco’s Inscription of couscous traditions, an example of international cultural cooperation. Disponível em: https://en.unesco.org/news/unescos-inscription-couscous-traditions-example-international-cultural-cooperation. Acesso em: 17 dez. 2020.


(2) BRASIL. Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000. Institui o registro de Bens Culturais de natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15 dez. 2020.


(3) TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Proteção ao patrimônio cultural brasileiro: análise da articulação entre tombamento e registro. Rio de Janeiro, 2010, 115p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT.


(4) ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


(5) BRASIL. Decreto nº 5.753, de 12 de abril de 2006. Promulga a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada em Paris, em 17 de outubro de 2003, e assinada em 3 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 15 dez. 2020.


(6) UNESCO. Diretivas Operacionais para a implementação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. 22-24 ju. 2010. Disponível em: www.unesco.org/culture/ich/doc/src/00009-PTPortugal- PDF.pdf. Acesso em: 15 dez. 2020.


(7) BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. 3. ed. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.


(8) UNESCO. Patrimônio Mundial do Brasil. Disponível em: https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/expertise/world-heritage-brazil. Acesso em: 16 dez. 2020.


(9) Sobre a trajetória do alimento, ver BRAGA, Isabel Drummond et al. (Coords.). Cuscuz: identidade e recriações: Magrebe, Portugal e Brasil do século XVI à atualidade. Lisboa: Relógio D’Água, 2019.




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