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O direito de usufruir dos progressos científicos e suas aplicações


Quadro - "Progresso Americano" (1872), de John Gast


Há muito que se debate a importância dos direitos culturais enquanto direitos humanos e fundamentais, quer na sua dimensão internacional, quanto nacional; e, atualmente, vistos também sob a perspectiva de uma interação normativa entre direitos constitucionais e direitos internacionais dos direitos humanos.


Entre as discussões frequentes deste campo, encontram-se direitos culturais mais específicos, tais como: direito autoral, liberdade de expressão, patrimônio material e imaterial, políticas públicas culturais, participação da vida cultural, entre outros.


Aqui se deseja incluir e ampliar o debate sobre um direito cultural previsto em convenções internacionais estruturais do sistema de garantias de tais direitos – o direito de usufruir dos progressos científicos por conta de sua extrema importância nos dias atuais.


Assim, o direito de se beneficiar dos progressos científicos se expressa inicialmente por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, conforme disposto em seu artigo 27: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam”.


Com o intuito de superar as discussões acerca da exigibilidade da Declaração de 1948, e atender aos líderes globais da ordem político-militar vigente pós Segunda Guerra Mundial, surgem os Pactos Internacionais de 1966, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU): o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).


Neste último, encontra-se também a previsão do direito de “desfrutar o progresso científico e suas aplicações”, incluindo ainda, de forma expressa, alguns deveres atribuídos aos Estados-Parte, tais como o de conservação, desenvolvimento e difusão da ciência, e o fomento à liberdade de pesquisa [1] (PIDESC, 1966).


Como se percebe dos dispositivos convencionais referidos, pouco se esclarece sobre o direito humano de aproveitar-se dos progressos científicos e de suas aplicações, e se pode até afirmar que somente muito recentemente, os debates entre cientistas, comunidades acadêmicas, sociedade civil, poder público local e instituições internacionais têm procurado compreender o conteúdo e a aplicabilidade deste direito.


Não se trata de demonizar os avanços científicos, mas de compreendê-los adequadamente no contexto da primazia da garantia de uma vida digna para humanos e seres não-humanos, além de buscar orientar as pautas de pesquisa científica não apenas por meio da busca de resultados comercializáveis, mas a partir de um debate sociopolítico e jurídico mais amplo, para garantir a máxima aplicação dos direitos envolvidos.


Nessa perspectiva, “tomando nota de que o progresso científico e tecnológico converteu-se em um dos fatores mais importantes do desenvolvimento da sociedade humana”, e que assim como tal progresso beneficia o desenvolvimento dos povos, tem aportado problemas sociais e riscos aos direitos humanos, a Assembleia Geral da ONU, em 1975, proclama a Declaração sobre o uso do progresso científico e tecnológico no interesse da Paz e em benefício da Humanidade (ONU, 1975).


A Declaração de 1975 visa conclamar os Estados à cooperação internacional para garantir que os resultados do progresso científico e tecnológico sejam utilizados para a garantia da paz e a efetividade dos direitos humanos, entre outros objetivos (ONU, 1975).


Somente em 2009, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) promove uma reflexão mais abrangente sobre o direito de beneficiar-se dos progressos científicos por meio da aprovação da Declaração de Veneza sobre o Direito de Desfrutar do Progresso Científico e suas Aplicações, tratando-se de preliminary findings and proposals (estudos e propostas preliminares), “com o objetivo de clarear o conteúdo normativo do direito de desfrutar os benefícios do progresso científico e suas aplicações” e fomentar sua implementação (Unesco, 2009).


Em um contexto global e local animado por interesses corporativos economicistas de ampliação do capital, impulsionados cada vez mais pelo desenvolvimento técnico-científico e tecnológico, refletir sobre a ética na Ciência, finalidades da pesquisa científica, promoção e garantia de direitos humanos, dignidade dos seres humanos e não-humanos, e benefício individual e coletivo dos resultados do progresso científico, já se propõe como um grande desafio.


Além disso, quando se trata de Ciência e Tecnologia, a realidade nos mostra que não geram apenas benefícios, mas têm fomentado grandes riscos para a vida e para o próprio planeta, especialmente por causa dos valores comerciais que se antepõem às decisões sobre pesquisa e aplicação de seus resultados.


Sem transparência dos resultados dos experimentos científicos e do desenvolvimento tecnológico, sem uma governança social ampliada, fundamentados no princípio da precaução e da efetividade dos direitos humanos, continuaremos sucumbindo aos encantos que a Tecnologia e a Ciência nos acenam, e sempre a desejar mais e mais do que elas têm proporcionado, em especial, facilidades e prazeres.


Daí a importância de se promover uma consciência crítica, uma compreensão adequada do alcance dos produtos tecnológicos e de responsabilidade mútua, entre povos e Estados.


Assim, pode-se antever a importância do alcance e do debate sobre o direito a beneficiar-se dos progressos científicos e suas aplicações, pois se trata de um direito que abrange não apenas o usufruto de tais conquistas, mas que estas também tenham como medida a garantia de uma vida digna para todos os seres, humanos e não-humanos.

Marcus Pinto Aguiar, Mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), Advogado, Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil. Professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)


Nota


[1] PIDESC, art. 15: “1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: a) Participar da vida cultural; b) Desfrutar o progresso científico e suas aplicações; c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. 2. As Medidas que os Estados Partes do Presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. 3.Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. 4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura”.

Referências


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III), em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 21.fev.2023.


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Adoptado y abierto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su resolución 2200 A (XXI), de 16 de diciembre de 1966. Disponível em: < https://www.ohchr.org/es/instruments-mechanisms/instruments/international-covenant-economic-social-and-cultural-rights>. Acesso em 21.fev.2023.


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração sobre o uso do progresso científico e tecnológico no interesse da Paz e em benefício da Humanidade Proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de novembro de 1975 - Resolução n.º 3384 (XXX). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/bmestar/dec75.htm>. Acesso em 21.fev.2023.


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA (UNESCO). Venice Statement on the Right to Enjoy the Benefits of Scientific Progress and its Applications. UNESCO in collaboration with the Amsterdam Center for International Law, the Irish Centre for Human Rights, and the European Inter-University Centre for Human Rights and Democratisation, in Amsterdam, the Netherlands, on 7-8 June 2007, in Galway, Ireland, 23-24 November 2008, and Venice, Italy, 16-17 July 2009. Disponível em: <http:// https://www.aaas.org/sites/default/files/VeniceStatement_July2009.pdf>. Acesso em 21.fev.2023.

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