Foto de Flávio Jota de Paula - Licenciado em CC-BY-NC-SA 2.0
A história do “descobrimento do Brasil”, para além das Entradas e Bandeiras que resultaram no povoamento de Minas Gerais, confunde-se com a história de um dos maiores museus de arte contemporânea e jardim botânico a céu aberto da América Latina (INHOTIM, 2024), o complexo Instituto Inhotim.
Em seus catálogos e textos institucionais, o Inhotim refuga a nomenclatura “museu” por associar o termo “à locais com pouca flexibilidade para propostas artísticas e sociais que não estão em diálogo com a realidade à sua volta” (DE MENEZES, A. T. do V., 2012, p. 943).
Ainda assim, tanto do ponto de vista do Direito Societário, por se tratar de uma OSCIP (BRASIL, 1999), quanto da perspectiva da legislação museológica internacional, logo brasileira, trata-se de um museu:
“[...] uma instituição permanente, sem fins lucrativos e a serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos. (ICOM, 2024) (Grifo nosso)
Ainda assim, em virtude de suas grandes proporções e das contradições que o cercam, ele é aqui referido como o “complexo Inhotim”. Ora, a incongruência começa na formação do Inhotim, idealizado desde a década de 80 pelo empresário Bernardo Paz.
Na tradição oral, “Inhotim” teve origem no nome do antigo dono da vila - o inglês Sir Timothy, que era chamado pelos mineiros de “Nhô Tim”, ou simplesmente, “Inhotim” (ESTADÃO, 2017). Timothy explorava a mineração em sua propriedade, vendida na década de 80 ao empresário e colecionador de arte contemporânea Bernardo de Mello Paz, para abrigar a sua coleção. Paz foi comprando os imóveis do entorno e essa ampliação de sua propriedade culminou na fundação do Instituto Cultural Inhotim, em 2002 (INHOTIM, 2023).
Apesar de ter atingido uma marca de um milhão de visitantes em 2012, no ano de 2017, o então idealizador do projeto, Bernardo Paz, e sua irmã foram condenados pela Justiça Federal de Minas Gerais a nove anos e três meses de prisão, em regime fechado, por usar o complexo para lavagem de dinheiro, e a outros cinco anos por evasão fiscal (PÁDUA, 2017).
Segundo a denúncia do Ministério Público, o dinheiro era pulverizado entre os empreendimentos de Bernardo Paz para dificultar o seu rastreamento; conforme declarou na sentença a magistrada da causa. A conta da empresa mantenedora do complexo Inhotim servia de conta intermediária para diversos repasses às empresas do Grupo Itaminas, sendo evidente uma enorme confusão patrimonial e contábil (PÁDUA, 2017).
Em virtude da condenação, em abril de 2018, o governo de Minas Gerais propôs um acordo de transferência de 20 obras do acervo do Inhotim, avaliadas em US$ 100 milhões, para o estado a fim de quitar dívidas tributárias. Bernardo Paz se afastou da Presidência do instituto e convenceu o estado a manter as obras no Inhotim, sob a guarda do complexo, dada a importância adquirida pela instituição nos últimos anos (DE LARA, 2018).
Desde então, são notáveis os esforços do complexo Inhotim para também se adequar aos novos tempos de crise climática, impondo à justiça socioambiental um papel significativo na proteção e gestão do patrimônio cultural, influenciado, por vezes, a processos que reforçam ou desmantelam a colonialidade.
Isso se reflete no complexo não só em termos de governança, mas também em disclosure, a contemplar exibição de obras críticas e de pessoas tradicionalmente subalternizadas, frequentemente representadas por uma museologia tradicional que tende a perpetuar perspectivas coloniais, desconsiderando o uso social do patrimônio cultural (CANCLINI, 2012) e, principalmente, a participação de comunidades ali já antes existentes.
Essa virada epistemológica pôde ser percebida pelo programa da exposição temporária “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra” (2023-2024), e culmina agora na exposição da instalação “O Barco” [The Boat] (2021) da pesquisadora e artista multidisciplinar portuguesa Grada Kilomba, cuja produção reivindica o direito à memória.
Ainda assim, persiste um apagamento da comunidade da Vila Inhotim, da própria história do complexo Inhotim, que poderia ser resgatado, reconhecido e reparado.
Com a extinção da comunidade do Inhotim, desapareceram suas manifestações culturais, ritualísticas e religiosas, patrimônios culturais imateriais como as Danças do Moçambique, a Folia do Divino, a Folia de Reis e a congada, além da gastronomia típica e os bens patrimoniais imóveis (BORGES, 2023, p. 265).
Inicialmente, o Instituto Inhotim comprometeu-se a preservar a memória da comunidade, inclusive com a criação de um espaço físico dedicado a um memorial com fotos e depoimentos dos antigos moradores. Claro que esse acordo não foi cumprido.
Atualmente, há denúncias no sentido de que, além de nenhum memorial ter sido construído, a Igreja de Santo Antônio - erguida pela comunidade do Inhotim através de um mutirão - foi dessacralizada e transformada em um espaço para eventos (OLIVEIRA, 2010).
O único imóvel que restou do antigo povoado rural, uma casa de fazenda do ano de 1874, foi comprada de uma família de funcionários do Inhotim que, assim como vários outros, habitavam aquele território onde hoje se localiza o complexo, e descaracterizada para abrigar a Galeria de Rivane Neuenschwander (DE MENEZES, 2012, p. 949).
Ironicamente, um local que deveria ser de memória e pertencimento coletivo com envolvimento das comunidades, viola diretamente os direitos culturais dos moradores originários da Vila Inhotim.
Por isso, a busca do complexo Inhotim por readequação e reparação cultural não será efetiva enquanto não viabilizar sua própria história e das pessoas que ali habitavam; um patrimônio em disputa que transcende um testemunho artístico deslocado e construído por terceiros ‘estrangeiros’, uma percepção que atravessa as comunidades dessa localidade como um dever de participação política e se revela, também, numa reparação cultural aos dali subtraídos.
Anauene Dias Soares - Perita de obras de arte e advogada em Direitos Culturais. CEO do Anauene Art Law & Expertise. Membro diretivo do IBDCult, membro do Instituto de Avaliação e Autenticação de Obras de Arte (i3A) e perita registrada na Ordem dos Peritos do Brasil (OPERB). Doutoranda em Relações Internacionais (UnB), Mestre em Ciências (USP, 2015), Especialista em Direito Internacional (Cedin, 2016), Especialista em Restauração de Bens Móveis (UPV - Espanha, 2006), Bacharel em Direito (PUC-Campinas, 2015) e Graduada em Artes Visuais (USP, 2007). Em 2023, publicou o livro “Direito Internacional do Patrimônio Cultural: Tráfico Ilícito de Bens Culturais” pela editora Letramento e na versão em inglês pela Tirant Lo Blanch. Artista.
Luciana Ricci Salomoni - Advogada e pesquisadora. Sócia-fundadora da Ricci Salomoni Sociedade de Advogados (RSLaw). Mestranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR). Especialista em Direito Ambiental (UFPR), Direito Empresarial (IBMEC) e Direito Processual Civil (Instituto Bacellar), com estudos em Arte e Patrimônio Cultural pela Academia de Direito Internacional de Haia (Holanda) e certificação ESG pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). Integrante das Comissões de Direito Ambiental e de Assuntos Culturais da OAB/PR, do LACLIMA - Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action, e da BASA Network. Mãe.
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