Uma das primeiras lições para quem estuda a cultura - ou temas correlatos - é a de deparar-se com a etimologia da palavra, associada ao termo latino colère, que significa cultivar, originalmente empregado para fazer referência ao plantio agrícola, quando manuseado pelo engenho humano, de modo a produzir frutos e grão melhores e mais abundantes.
Subsequentemente, do setor do plantio de vegetais, a noção apresentada migrou metaforicamente para o campo dos conhecimentos, sendo que daí em diante, a palavra cultura, desprovida do prefixo “agri”, passou a designar o desenvolvimento das faculdades intelectivas, operativas e sentimentais do ser humano, enquanto indivíduo ou como membro de uma coletividade.
Classificar as pessoas e as sociedades como cultivadas (ou cultas) e não cultivadas (ou incultas / sem cultura), passou a ser uma medida de escalonamento em que as primeiras supostamente teriam o direito de reger a vida das outras. E, para provar a sua cultura, a fatia dominante do poder criou instituições, como universidades, academias e conselhos, e a elas fez associar a ideia de que o simples ingresso em pelo menos uma delas, tal condição de culta já está automática e inquestionavelmente demonstrada.
Essa objetivação tão cômoda quanto insustentável, gerou a reação que pode ser sintetizada na ideia de diversidade cultural, pela qual se argumenta que todos são providos de sua própria cultura, sendo que as diferentes culturas possuem igual dignidade, não obstante as suas diferenças que, aliás, devem ser tratadas como riqueza da humanidade.
Especificamente no campo das políticas culturais, um dos efeitos mais visíveis dessa reação foi a luta pelo fim dos “conselhos de notáveis” e a adoção de colegiados com representantes dos distintos segmentos culturais, baseada na suposição inversa de que, pelo simples fato de se relacionar com dada atividade cultural, qualquer pessoa nessa condição tem as competências suficientes para as atividades de conselheiro.
A situação descrita representa apenas a antítese da outra que pretende substituir, não sendo, portanto, ainda a ideal, por ser excludente e se basear em outro critério de objetivação, no caso, o de ser, como dizem, “um(a) fazedor de cultura”, que seria única credencial suficiente à tarefa.
O fato é que, independentemente das apropriações feitas ao longo da história, a ideia de cultura exige, sim, aprimoramento, esforço e labor para tanto. Do mesmo modo que o simples fato de fazer parte de uma universidade não demonstra cultivo, o mesmo ocorre com o de simplesmente estar no âmbito do ativismo cultural.
Não se pode excluir os intelectuais dos conselhos de cultura, mas apenas fazê-los conviver, em condições de igualdade, com os demais componentes da comunidade cultural que é, lembre-se, muito mais ampla que a dos artistas e dos gestores. Para ninguém desaparece a obrigação de cultivar-se, de aprimorar-se culturalmente e, por conseguinte, em suas distintas dimensões humanas.
Se não houver esse esforço, conviveremos com a ignorância potencializada, às vezes testemunhada por este articulista em encontros culturais, nos quais, por exemplo, um esquerdista usa o tosco e mentiroso argumento de que Shakespeare era dono de escravos, para fugir das verdades que emanam das suas peças; ou o direitista se recusa a assistir a uma aula porque o professor falou a palavra “militância”, que ele associa aos seus oponentes, sem saber que o termo se origina da palavra “militar”, que ele tanto preza.
Toda atenção é pouca, pois diferentemente do que Erasmo de Roterdã fez com a loucura libertária, jamais poderemos fazer o elogio da estupidez!
Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).
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