Foi publicado no Diário Oficial da União, no dia 23 de março de 2023, o novo decreto de fomento à cultura no Brasil. Não é exatamente o novo “Decreto da Rouanet”, como muitos estão anunciando [1], embora seja voltado ao Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) também.
O Decreto n° 11.453/2023 [2] até versa bastante sobre os meandros da Lei 8.313/91 (a famigerada Lei Rouanet, que instituiu o Pronac), mas ele é bem mais elástico, abarcando outros mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura, para além do tradicional tripé previsto no art. 2° da Lei Rouanet, a saber: i) Fundo Nacional de Cultura – FNC; ii) Incentivo a projetos culturais (conhecido também como “mecenato”); iii) Fundo de Investimento Cultural e Artístico – FICART.
O Decreto foi assinado pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em cerimônia festiva no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O seu conteúdo está bastante alinhado ao senso de urgência e oportunidade da política cultural do Governo Lula, no sentido de tentar regulamentar, com o menor desgaste possível, diversos temas necessários ao desembaraço da retomada da política nacional de incentivo à cultura.
A contrapelo da hierarquização das normas jurídicas, entende-se que este Decreto se antecipa à proposta do Marco Regulatório do Fomento à Cultura, que ainda tramita no Congresso Nacional (PL 3905/21), trazendo uma série de soluções concretas para auferir segurança jurídica à gestão cultural brasileira.
A ideia é que as ferramentas previstas nessa recente norma infralegal também possam ser utilizadas na implementação da Política Nacional Cultura Viva (Lei nº 13.018/2014), na Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Lei nº 14.399/2022), na Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) e noutras políticas públicas culturais formuladas pelos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Cultura.
Essa elasticidade do novo Decreto – que menciona expressamente tais normas (art. 2º, I, II, III, IV e V) – pode sanar muitos entraves que os gestores públicos certamente encontrarão na implementação das respectivas leis em âmbito municipal e estadual.
O mais correto seria, então, classificá-lo como uma regulamentação do disposto no inciso VI do §2º do art. 216-A da Constituição Federal de 1988. Para quem não está familiarizado com o dispositivo constitucional, o artigo 216-A foi inserido na Carta Magna pela Emenda Constitucional 71/2012, tratando especificamente do Sistema Nacional de Cultura (SNC): uma estrutura “organizada em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, [que] institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais”.
Não existe uma lei regulamentando o Sistema Nacional de Cultura, mas o Decreto n° 11.453/23 vem dar corpo ao inciso VI do §2º art. 216-A, especificamente um dos elementos que integra a estrutura do SNC, qual seja, o fomento do sistema de financiamento à cultura. O fomento, portanto, é compreendido como uma peça-chave na efetiva implementação da complexa arquitetura do SNC.
Mas o que é fomento, afinal? O Decreto não traz uma definição normativa sobre esse termo, mas é possível compreendê-lo como “todo e qualquer emprego de recurso público como subvenção, sem a exigência de qualquer forma de retorno para o Estado. Este fomento pode ser tanto financeiro quanto não-financeiro. Por exemplo, o repasse de uma premiação via edital seria um caso particular de fomento financeiro, já a cessão de um espaço público para ensaios de um grupo de teatro seria um caso de fomento não-financeiro”. [3]
Segundo o Decreto, há fomento direto e fomento indireto. (i) O primeiro corresponde ao Fundo Nacional de Cultura, bem como às dotações orçamentárias específicas do MinC ou de suas entidades vinculadas, que aportam diretamente os recursos aos agentes culturais beneficiários (podem ser artistas, produtores culturais, gestores culturais, mestres da cultura popular, curadores, técnicos, assistentes e outros profissionais dedicados à realização de ações culturais); (ii) o segundo diz respeito ao já conhecido modelo de incentivo fiscal (também conhecido como “mecenato”) e, para surpresa, ao Fundo de Investimento Cultural e Artístico – FICART.
Embora esteja previsto em lei, sim, a menção ao FICART causa estranheza e macula o já mal colocado adjetivo de “novo Decreto”, considerando que nesses 32 anos de Lei Rouanet ele nunca saiu do papel.
É que o FICART se mostrou pouco atrativo para as empresas patrocinadoras em relação ao chamado “mecenato”, relegando aquele mecanismo ao ostracismo. O risco inerente ao FICART sempre foi considerado um asco para os investidores, mas o “novo” Decreto, ao que parece, pretende mudar esse cenário. Se isso for realmente empreendido, aí sim, teríamos algo inovador.
Mas de que maneira o FICART poderia ser remodelado? A previsão do FICART nesse Decreto é uma mera replicação automática do tripé da Lei Rouanet ou há algo, de fato, de inédito em vista? Seguindo ainda mais nessa perna, indaga-se: há outras formas que possam complementar a ideia de fundos de investimento?
Atualmente, sim, há novas formas de fomento que merecem destaque – e necessitam de regulamentação – tais como os fundos patrimoniais, também conhecidos como endowments (Lei nº 13.800/2019), os quais podem se constituir como uma forma complementar de sustentabilidade financeira, pensada a longo prazo, para as organizações culturais. Sobre os endowments, especificamente, há uma expectativa na regulamentação do art. 13, § 9º da Lei dos Fundos Patrimoniais que poderá azeitar o sistema de mecanismos de fomento à cultura no Brasil, fazendo uma conexão entre o filantropismo e as leis de incentivo à cultura. Mas isso tudo deve ser debatido amplamente.
O senso de urgência não pode negligenciar a participação popular. Além do Decreto n° 11.453/2023, que acabou de ser assinado pelo Presidente da República, o Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural do Ministério da Cultura (SEFIC/MinC), Henilton Menezes, anunciou que está elaborando uma nova Instrução Normativa (IN) “que definirá novos procedimentos para apresentação, recebimento, análise, homologação, execução, acompanhamento, prestação de contas e avaliação de resultados de projetos culturais financiados por meio do mecanismo de Incentivo Fiscal do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac)”.
A nova IN está sendo bastante aguardada pelo campo da produção cultural, sobretudo em razão das normas anteriores que asfixiaram o setor, afetando o bom funcionamento do sistema de financiamento aos projetos culturais. As gestões pretéritas da então Secretaria Especial de Cultura minguaram o fomento à cultura no Brasil através de normas infralegais (Decretos e Instruções Normativas sobretudo) que criavam empecilho ao financiamento público.
Esse método perverso funcionou. A edição deliberada de normas infralegais controversas do Governo Bolsonaro foi tamanha, que a Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 918) perante o Supremo Tribunal Federal, demonstrando o “estado de coisas inconstitucional” da política nacional de cultura.
Noutras palavras, foi uma enxurrada de normas do Poder Executivo que afrontavam os direitos culturais, os quais são considerados, além de fundamentais, direitos humanos. Esse modus operandi, porém,não pode deixar vestígios nas atuais políticas culturais. É necessário romper com o autoritarismo que privilegia a centralização dos processos decisórios, principalmente da criação de normas jurídicas voltadas ao segmento cultural, as quais deveriam advir de um debate profundo e participativo da sociedade, por mais técnico que possa parecer o tema.
É importante iniciar, portanto, o quanto antes, um debate sobre a mudança do sistema de fomento, com a participação dos múltiplos agentes interessados, como sinaliza o Marco Regulatório do Fomento à Cultura (PL 3905/21). Apesar da compreensível urgência da chamada “retomada” – e o Decreto é um importante marco desse processo político – as novas leis de incentivo não podem prescindir da participação popular, que é, segundo Humberto Cunha Filho, um dos princípios constitucionais culturais [4].
O Decreto n° 11.453/2023 e, posteriormente, a IN da Rouanet, que são normas concebidas pelo Poder Executivo, não foram colocadas para Consulta Pública, o que seria considerado uma boa prática de gestão pública.
O Poder Executivo Federal tem tradição de proveitosas consultas dessa natureza. Algumas instituições, inclusive, já estão fazendo isso; basta uma rápida olhada no site www.participa.br para constatar duas experiências exitosas: (i) a Agência Nacional de Cinema – ANCINE, já agora em 2023, encampou uma consulta pública acerca da sua agenda regulatória para o biênio 2023/2024, incluindo as Instruções Normativas que pretende revisar; (ii) o Núcleo de Pesquisa em Direito do Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Ouro Preto também está fazendo uma consulta acerca da revisão da legislação do patrimônio cultural brasileiro.
É preciso relembrar que, além de uma boa prática, a democratização dos processos decisórios com participação e controle social é um mandamento constitucional (art. 216-A, §1º, X) que deve orientar o necessário debate acerca do fomento à cultura no Brasil, sob pena de reproduzirmos uma lógica perversa de exclusão dos múltiplos agentes envolvidos no tema.
Mário Pragmácio, Professor de Legislação de Incentivo à Cultura do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense, Doutor em Direito (PUC-Rio) e Conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) Notas [1]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/03/05/lei-rouanet-decreto-ministerio-da-cultura-governo-federal.htm?cmpid=copiaecola [2]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11453.htm [3] AZEVEDO JÚNIOR; Ivânio Lopes de. MESSIAS, Gretha Leite Maia de; TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves. Financiamento e Fomento da Cultura no Ceará: em busca de fontes alternativas de recursos. [mimeo] Fortaleza, 2023. No prelo. [4] CUNHA FILHO, Humberto Cunha. Teoria dos Direitos Culturais. São Paulo: Edições SESC, 2018.
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