É quase inevitável falar de governo do povo e não associar à Grécia Antiga, notadamente à Cidade-Estado de Atenas, tão potente foi o mito criador da demokratia, - “capacidade de se autogovernar entre iguais”. A lenda, envolvendo as origens gregas da democracia, atribui esse novo modo de governar à coragem, ao gênio e ao bom senso dos cidadãos atenienses. Contudo, é difícil acreditar que tal governo tenha nascido e se desenvolvido tão harmoniosamente, especialmente levando-se em consideração a observação desafiadora de John Keane (1) de que “a democracia nunca foi construída democraticamente”.
A democracia atual é exercida de forma diversa daquela adotada na antiguidade grega, porque os valores sociais mudaram, em que pese a sua essência permanecer na noção de um governo de muitos ou da maioria. Mas, além disso, a democracia atual se utiliza de modelos representativos e da organização em partidos políticos com eleições periódicas, como uma forma de promover a alternância no exercício do poder e conter abusos, preocupação que se fazia presente também na democracia ateniense.
Por outro lado, sempre ameaçada de violação e até de extinção, a democracia tratou de criar mecanismo para a sua própria defesa, sendo um dos mais comuns, na origem, o ostracismo, que era a medida adotada para combater os abusos democráticos praticados por cidadãos politicamente ativos que, de forma egoísta, buscavam adquirir poder acima de todos os outros. Seria o remédio, portanto, para defender a democracia do excesso democrático, e obstar que a autonomia do povo o seduzisse a escolher líderes abusivos relativamente a quem deveria servir.
Em termos práticos, o ostracismo consistia numa espécie de “competição de impopularidade” em que uma vez por ano a Assembleia de cidadãos se reunia para decidir se alguém entre eles era desejoso de poder acima dos demais, para ser julgado por essa pretensão. A pena: o banimento de Atenas por 10 anos, impelindo o condenado ao desterro político.
A Ágora era a arena principal das discussões e decisões dos cidadãos em Atenas. Atualmente, as redes sociais parecem ser o campo desse debate político entre os cidadãos, ou pelo menos, tornou-se um espaço utilizado nas disputas políticas para a defesa dos ideais e valores dos diferentes grupos políticos, bem como é utilizada por Chefes de Estado, de Governo e outras autoridades públicas para se comunicarem com seus eleitores.
O banimento atual não é dos espaços físicos e geográficos, como na Grécia antiga. O ostracismo atual ocorre na esfera digital com bloqueios e exclusões de contas nas redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram e YouTube. O último concurso mundial de impopularidade foi vencido por Donald Trump, ex-presidente americano, derrotado na mais recente eleição estadunidense. A pena aplicada a ele na arena digital foi o bloqueio permanente da sua conta no Twitter, sob o argumento do “risco de uma maior incitação à violência”.
Vale lembrar que o referido político não aceitou o resultado das urnas, de forma tão intensa e insistente que levou seus seguidores a invadirem o Capitólio.
O ponto de discussão neste ensaio não são os fatos que foram usados para justificar a adoção do “ostracismo digital”, tampouco, a justiça ou injustiça da medida, mas o próprio processo de tomada dessa decisão e a legitimidade dos julgadores. Em Atenas, o ostracismo, cuja origem do termo ostrakismos significa julgamento por cacos, possuía uma ritualística que buscava impedir fraudes, bem como a decisão era tomada democraticamente, segundos as regras vigentes à época, conforme nos relata John Keane:
“Para que a assembleia pudesse ser mantida o mais calma possível, a discussão era severamente restrita antes do voto final ser feito. A competição de impopularidade concluía com o costume incomum de cercar uma grande área aberta da assembleia, onde a votação final ocorria, em silêncio. Dez entradas para o cercado eram criadas: uma para os membros de cada tribo, que entravam em fila, um a um, segurando um caco de cerâmica com o nome do cidadão a ser expulso rabiscado. Após depositar seu voto, para impedir fraude, os cidadãos precisavam permanecer dentro do cercado até os votos serem contados e o nome do sacrificado ser anunciado. Era um homem, um voto, uma vítima” (2)
E no ostracismo atual, realizado nas redes sociais, quais são as regras que disciplinam a aplicação dessas sanções que desterram os indivíduos do meio virtual? Quem as aplica ou deveria aplicar? Como ficam as garantias constitucionais ao contraditório e a ampla defesa?
E a liberdade de expressão, direito cultural fundamental? E antes que um leitor desavisado aplauda ou critique esse texto pensando que é uma defesa dessa figura política americana, não se trata disso. É apenas um alerta baseado na experiência democrática dos atenienses da antiguidade, que abandonaram o ostracismo quando perceberam que ele podia ser mal utilizado por aqueles que queriam eliminar os seus rivais. Ou seja, existem outras ameaças à democracia e à liberdade, além daquele político derrotado e inconformado.
Na atualidade, como as redes sociais envolvem uma diversidade de conteúdos e espaços de discussão, que transcendem os limites das relações meramente privadas, elas [redes sociais] devem ser disciplinadas por normas de direito público aptas a assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos nesse mundo digital, começando por assegurar um devido processo legal.
Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
(1) KEANE, John. Vida e morte da democracia. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 36.
(2) KEANE, ob. cit. p. 68
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