O novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), estabelece investimentos de R$ 240 bilhões em recursos públicos federais para os próximos quatro anos. Destes, R$1,3 bilhão deverá ser destinado para o desenvolvimento de ações e projetos do Ministério da Cultura (MinC).
Este recurso deve viabilizar a execução de inúmeras obras essenciais para o setor cultural. Tal fato tem sido objeto de relevante debate nacional – deve haver recursos para obras no setor cultural ou apenas fomento direto para ações e projetos culturais e artísticos?
É preciso destacar que este investimento é uma demanda recorrente de diversos setores do campo cultural. Isto, pois, as enormes desigualdades econômicas e sociais se refletem também no exercício dos direitos culturais. Os desequilíbrios regionais (no âmbito de municípios e regiões dentre os Estados Federativos) se tornam visíveis com a enorme concentração de equipamentos culturais em grandes centros urbanos e a existência de “vazios” em diversas regiões, especialmente em pequenos municípios. A construção de novos equipamentos culturais [1] visa a criação de uma infraestrutura cultural mínima que dê condições ao exercício de direitos culturais.
Como realizar formação em dança ou em teatro sem qualquer espaço próximo do adequado? Como realizar um espetáculo? Como garantir aos cidadãos de diversos municípios no Brasil acesso a apresentações artísticas, aos livros, se não há qualquer condição objetiva deste se realizar ali? A constituição estabelece a democratização do acesso aos bens de cultura como elemento central no exercício dos direitos culturais [2], mas a realidade em grande parte do Brasil é outra. Aqui infraestrutura cultural deverá reduzir as desigualdades na produção cultural, permitindo condições materiais objetivas, potencializando uma produção mais diversa com estrutura para ensaios, formações, fruição e circulação [3].
Neste sentido, a criação de espaços culturais é imprescindível. Trata-se do fomento à cultura, à arte e à sociabilidade. Isto sem falar da necessidade de reformar equipamentos já existentes, já dotados de identidade e pertencimento pelos diferentes grupos sociais. A falta de investimento federal em equipamentos culturais desde 2016 agravou e muito a situação e tornou urgente a necessidade de verbas para reformas e restauros de equipamentos públicos culturais. Não estamos falando de prédios públicos para ações burocráticas, mas de espaços de convívio, cultura e participação social. Os direitos culturais [4] são aqueles afetos às artes, memórias coletivas e fluxo dos saberes. Esses três grandes grupos representam a fruição de diversas formas de manifestação da cultura, plasmada em equipamentos culturais ou em bens patrimoniais materiais ou imateriais. É por isso que a pauta da infraestrutura cultural é tão urgente.
Os entes brasileiros têm responsabilidade na promoção da cultura, garantindo o acesso a todos indistintamente. Muitos desses bens estão dispostos em equipamentos culturais que difundem as variadas expressões, tais como bibliotecas, centros culturais, teatros, museus, cinemas e parques. O estabelecimento desses bens culturais, por meio das políticas intersetoriais, favorece uma valorização dos contextos socioculturais de forma ampla [...]
É preciso destacar a necessidade de inventariar equipamentos culturais em uma cidade para a construção de uma política cultural mais democrática que possa distribuir esses bens com equidade, atingindo não apenas as camadas abastadas da sociedade, mas também aquelas mais distantes dos centros urbanos [5].
Trata-se de demanda antiga do próprio setor. Citamos como exemplo a última Conferência Nacional de Cultura (3ª), de 27 de novembro a 1º de dezembro 2013, cuja proposta mais votada no eixo cidadania e direitos culturais foi justamente a demanda por equipamentos culturais [6].
Um dos grandes desafios da garantia dos direitos culturais é também a infraestrutura cultural. Exemplo do Ceará, uma das melhores referências nacionais, com uma potente Rede Pública Estadual de Equipamentos Culturais, possui regiões que não têm nenhum equipamento – (isto considerando equipamentos estaduais, municipais e federais). Recentemente (2023) nas 14 oficinas regionais participativas do PPA no Ceará - em todas – solicita-se equipamentos culturais.
É por esta razão que o programa territórios culturais, que se constitui na produção de uma rede de espaços integrados de cultura, de abrangência regional, compostos de espaços e equipamentos para atuação em múltiplas escalas territoriais, atendendo a população de baixa renda, apresenta quatro objetivos:
• Diminuir a desigualdade de acesso a bens e serviços culturais;
• Valorizar a diversidade cultural e dar dignidade à população com espaços arquitetônicos qualificados, que dialoguem com as características locais, com acervos novos e programação cultural diversa para população de baixa renda;
• Fortalecer a mobilização social e ajudar a melhorar indicadores de segurança pública e educação nos territórios beneficiados;
• Integrar as políticas culturais federais, estaduais, municipais e locais.
É importante acrescentar que o fomento (direto ou indireto) a projetos culturais é extremamente relevante. Porém, é preciso uma maior articulação das políticas públicas culturais no sentido de estruturar de maneira diversa e mais sustentável o ecossistema das políticas públicas.
É, inclusive, nesse sentido, que a Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022 (Política Nacional Aldir Blanc) deverá ser alterada para garantir à União, por meio do Ministério da Cultura, a possibilidade de condicionar o repasse até o limite máximo de 30% do valor total dos recursos à observância de diretrizes definidas por esta [7].
Esta alteração da Lei está prevista no PL 4172/23, que já foi aprovado pela Câmara e agora está no Senado com grandes perspectivas de aprovação. Parece-nos muito relevante destacar que a presente proposta fortalece esta articulação das políticas públicas e ‘recoloca a união no pacto federativo’ [8] no uso dos recursos da Cultura. Isto, pois na execução da Lei Complementar 195/2022 (Lei Paulo Gustavo) e da Lei 14.017/2020 (Lei Aldir Blanc) – a União fazia mero repasse dos recursos e se desobrigava na definição de diretrizes, estratégias e articulação das políticas públicas.
A Política Nacional Aldir Blanc possibilitará consolidar o Sistema Nacional de Cultura, e para tal é preciso que os investimentos sejam feitos de forma estratégica, fortalecendo todos os elos do ecossistema cultural e artístico, ultrapassando a lógica pontual e fragmentada de fomento sem criar as engrenagens necessárias no sentido de gerar consistência e sustentabilidade na cadeia da economia da cultura.
No que atine ao que chamamos de infraestrutura cultural, a União, como já explicado, irá no valor de no máximo 10% contribuir para tal, sem prejuízo de os Estados e Municípios também investirem os recursos recebidos com ampla discricionariedade [9]. “O objetivo dos equipamentos culturais é promover a criação das obras artísticas, a sua disseminação, a democratização do acesso aos bens da cultura e as condições para a fruição das linguagens artísticas e dos bens que integram o patrimônio cultural” [10] e, porquanto, o investimento neste sentido visa garantir a efetivação dos direitos culturais.
André Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Unifor, com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor, professor de Direito e Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Luisa Cela, Secretária de Cultura do Estado do Ceará, Secretária Executiva do Fórum de Gestores Estaduais de Cultura. Possui graduação em Psicologia com mestrado em saúde da família
Notas
[1] Para Teixeira Coelho os equipamentos culturais podem ter duas acepções. Ao que nos interessa para este artigo, uma destas perspectivas considera os equipamentos culturais como espaços destinados às práticas culturais, edificados ou não, como teatros, cinemas, bibliotecas, centros de cultura, museus etc, que podem ser entendidos como lugares por excelência onde circulam, são produzidas ou se consomem as obras artístico-culturais. TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico de política cultural: Cultura e Imaginário. São Paulo: Iluminuras, 1997.BRASIL. Ministério da Cultura. Programa Nacional de Apoio à Cultura.
[2] Art. 215, § 3º, IV. Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
IV democratização do acesso aos bens de cultura;
[3] Art. 215. [...]
§ 3º [...]
II produção, promoção e difusão de bens culturais;
III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões [...]
V valorização da diversidade étnica e regional.
[4] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2018.
[5] FERREIRA NETO, José Olimpio; CASTRO, J D L; PINHEIRO DE ALMEIDA, T. O direito ao lazer e os direitos culturais sob uma perspectiva multidisciplinar. Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2021.
[6] BRASIL. Anais III Conferência Nacional de Cultura, Pág.116, 2012. http://cnpc.cultura.gov.br/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/ANAIS-IIICNC_-RF.pdf
[7] Art. 18. Durante o período de vigência do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Ministério da Cultura definirá as diretrizes para a aplicação dos recursos oriundos da Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022, no âmbito do Sistema Nacional de Cultura. [...]
§ 2ºNa definição das diretrizes de que trata o caput deste artigo, o Ministério da Cultura poderá condicionar o repasse, até o limite máximo de 30% (trinta por cento) do valor total dos recursos de que trata a Lei nº 14.399, de 8 de julho de 2022, à aplicação em políticas e programas nacionais de cultura específicos, observado o máximo de 10% (dez por cento) do valor total dos recursos de que trata a referida lei para obras vinculadas ao PAC e o mínimo de 10% (dez por cento) do valor total dos recursos de que trata a referida lei para o fortalecimento da Política Nacional de Cultura Viva, mantida a proporcionalidade de que tratam os incisos I e II do caput do art. 7º da referida lei, na forma estabelecida em ato do Ministro de Estado da Cultura.
[8] “a efetivação de direitos culturais nos moldes previstos na Constituição Federal vigente é de competência dos três entes de nossa federação que devem, sob a forma cooperada, buscar as diretrizes delineadoras das atribuições de casa ente no que diz respeito a melhor forma de trabalhar conjuntamente.” SOARES FILHO, S; DIAS PONTE, M. CULTURA E FEDERALISMO NA TRAJETÓRIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA, Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 12, n. 2 / 2017, Pág. 541.
[9] Lei 14.399/2022. Art. 5º Para o alcance dos objetivos previstos no art. 2º desta Lei, a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura apoiará as seguintes ações e atividades:
X - construção, formação, organização, manutenção e ampliação de museus, de bibliotecas, de centros culturais, de cinematecas, de teatros, de territórios arqueológicos e de paisagens culturais, além de outros equipamentos culturais e obras artísticas em espaço público;
[10] TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico de política cultural: Cultura e Imaginário. São Paulo: Iluminuras, 1997.BRASIL. Ministério da Cultura. Programa Nacional de Apoio à Cultura.
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