O aniversário do instrumento de salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro
“Parabéns pra você meu amor Marquei a data no meu calendário Desejo que você seja feliz Parabéns pelo seu aniversário! [...]”
(Parabéns pra você! – José Orlando e Tetê)
Enquanto a política de preservação de bens culturais materiais no Brasil é uma conhecida octogenária, ligada ao surgimento e à aplicação do seu principal instrumento de proteção, o tombamento, a salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI) é algo recente, marcada por ausências e lacunas. Apesar de desconhecida ou confundida com o ato de tombar, aproveitando-me da gíria fluida dominante no ambiente digital, não podemos afirmar que a salvaguarda dos bens intangíveis do país é cringe, tampouco démodé – para me valer de um jargão francês anterior.
Ao contrário, está na agenda internacional de valorização das culturas transfronteiriças, permanecendo sempre em constante disputa pelo reconhecimento nos espaços de poder, em organismos internacionais como a Unesco, por exemplo. Sei bem que não se trata de um adjetivo inglês, mas de um verbo. No entanto, tomo a liberdade dos memes trocados entre gerações mais recentes, sem estigmas etários, para brincar seriamente e incorporar a expressão em nossa linguagem com a finalidade de comemorar o nascimento do Registro e pontuar desafios atuais pós-sopro de mais uma velinha.
A vertente imaterial do patrimônio (1) foi uma das novidades trazidas pela Constituição de 1988 junto com a terminologia direitos culturais para a sua garantia como direito de todos. O artigo 216 da Constituição trata isonomicamente as duas dimensões substanciais do patrimônio brasileiro. O fundamento histórico da previsão está associado com a ampliação do conceito de patrimônio cultural para incluir bens cuja referência cultural é legitimada por grupos sociais marginalizados, excluídos ou vulnerabilizados pela política cultural de preservação que, durante muito tempo, privilegiou a preservação de bens culturais valorizados pelas elites e classes sociais mais abastadas da sociedade brasileira.
Assim também essa ótica restrita e excludente era realizada por técnicos e intelectuais que a conduziram dentro da organização administrativa do Estado, selecionando e separando os bens merecedores de proteção, diferenciando-os das expressões da cultura sem excepcionalidade, despidas de autenticidade ou não vinculadas a fatos vultosos, notáveis e memoráveis de personagens históricos relacionados à demonstração de poder desses atores.
A emergência do patrimônio cultural imaterial de natureza viva, processual, dinâmica e mutável, fez com que, no âmbito federal, houvesse a criação do mecanismo de salvaguarda de bens culturais imateriais, o mencionado Registro, regulamentado pelo Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000, e do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial – PNPI.
O Registro é um mecanismo administrativo de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, decorrente de procedimentos infralegais, no qual o Poder Público, mediante ato declaratório de inscrição em quaisquer de seus Livros, e garantida a participação comunitária, identifica, reconhece e valoriza expressões, manifestações, saberes, celebrações e lugares de referência cultural para quaisquer dos grupos formadores da sociedade brasileira, dentre outras maneiras de exprimir a diversidade e o pluralismo dos bens culturais imateriais nacionais, com a finalidade de garantir a sua continuidade histórica e promover a sua transmissão intergeracional, difusão e sustentabilidade, por meio de políticas culturais. As palavras-chave do Registro são reconhecimento e valorização.
Durante vinte e um anos, a titulação de bens imateriais, como PCI brasileiro e sua política de salvaguarda, apresentou virtudes no fortalecimento da visibilidade do patrimônio de grupos formadores da sociedade brasileira, cujas memórias e identidades foram apagadas, esquecidas ou até marginalizadas. Por outro lado, exigiram mudanças de posturas administrativas em instituições culturais acostumadas a lidar com bens de outras naturezas, como o IPHAN, bem como com conflitos e disputas em torno não só da noção de patrimônio, mas como também de propriedade e da titularidade sobre produtos advindos de expressão e saberes tradicionais.
Nesse sentido, novos sujeitos, denominados detentores, apareceram com novas demandas específicas, em alguns casos insolúveis e incontornáveis pela mediação dos órgãos e entidades guardiãs do patrimônio, exigindo imaginação hermenêutica e construções jurídicas inovadoras cujos pilares se encontravam nos processos históricos de reivindicações de direitos fundamentais e na participação popular em demandas de patrimonialização desses bens.
Assim, o Registro faz aniversário com desafios (2) interdependentes de três ordens: a) o primeiro relacionado à própria política de salvaguarda; b) o segundo atrelado aos efeitos jurídicos do mecanismo; e c) o terceiro afeito ao nível macropolítico brasileiro.
A política de salvaguarda dos bens registrados ainda enfrenta o dilema decorrente do processo de visibilidade da titularização do patrimônio que muitas vezes se transforma em meio para atingir outras finalidades, como a da exploração econômica de produtos oriundos de saberes-fazeres, reproduzindo fetichizações e folclorizações indesejadas que promovem e facilitam apropriações por terceiros que não participam direta ou indiretamente da continuidade e transmissão do PCI. Uma das soluções, frequentemente adormecida no campo retórico das políticas culturais e apontada para amenizar a complexidade desses problemas é a garantia da participação dos detentores em todo o processo de salvaguarda, desde a instauração do processo do Registro até a fase de execução das ações e projetos de apoio e fomento a sua continuidade.
O segundo desafio advém do primeiro, pois circunstâncias conflitivas instaram a reconhecer grupos e coletividades detentores de expressões e conhecimentos tradicionais como titulares de direitos associados ao patrimônio cultural imaterial. No entanto, torna-se cada vez mais difícil, em bens diversos territorialmente espalhados pelo país, identificar a quem e como seriam reconhecidos e atribuídos determinados direitos associados à gestão e reprodução dos bens culturais imateriais registrados.
Com o mecanismo e as ações e políticas de salvaguarda, veio à tona a expectativa de detentores de expressões e conhecimentos tradicionais por reconhecimento de direitos coletivos, principalmente direitos intelectuais sobre seus bens culturais imateriais registrados. O surgimento de conflitos exigiu a atuação do IPHAN para mediar ou solucionar litígios entre esses sujeitos e terceiros estranhos à transmissibilidade, continuidade, produção e reprodução cultural desse patrimônio, que se apropriaram indevidamente de formas de expressão e modos de saber-fazer sem sua autorização ou participação.
O Registro do PCI que, até então, no âmbito da formulação do Grupo de Trabalho e da Comissão que o conceberam, só possuiria efeitos declaratórios de reconhecimento e valorização dos bens culturais imateriais dos detentores obrigando o Estado a salvaguardá-los, apoiá-los, se abriria para outras potencialidades. Dessa maneira, os usos que se faz do Registro, atestando seus efeitos constitutivos (3), surgem da necessidade dos detentores de se proteger de apropriações privadas de terceiros, agentes do mercado, isto é, da reificação da dinâmica processual dos bens culturais imateriais, de seus produtos e resultados, ou dos bens materiais a eles associados.
Por fim, no desafio do nível macropolítico brasileiro, as limitações encontradas pela política pública encetada pelo Registro de bens culturais imateriais esbarram no assédio estrutural contra a Administração Pública federal da cultura agravado nos últimos anos, principalmente no atual período do bolsonarismo, com o desmonte de órgãos e entidades responsáveis por sistematizar e organizar políticas culturais em determinados setores e áreas, ausência de renovação nos quadros administrativos e falta de investimentos materiais e financeiros para continuidade de planos e ações como os de salvaguarda do PCI. O IPHAN é uma dessas vítimas.
No aniversário deste relevante instrumento de salvaguarda, apesar da celebração de sua existência, o maior presente ao seu dia seria a sua continuidade duradoura no tempo, sustentáculo e apoio à transmissão intergeracional de expressões, saberes e fazeres de povos e comunidades que, não obstante a pandemia sanitária e política, permanecem resistindo.
Rodrigo Vieira é Coordenador do Curso de Direito e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFERSA. Membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)
(1) Sobre o tema ver “Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: uma análise comparativa entre Brasil e Itália. Salvador: EDUFBA, 2020”, organizado por Francisco Humberto Cunha Filho e Tullio Scovazzi
(2) Sobre os desafios, ver mais recentemente a coletânea organizada por Inês Virgínia Soares, Yussef Campos e Raul Lanari, intitulada “Patrimônio Imaterial e Política Pública no Brasil: trajetórias e desafios”, publicada pela editora Letramento este ano
(3) Desenvolvi esta tese no artigo “Os efeitos jurídico-sociais do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial”, publicado na Revista Culturas Jurídicas, v.7, n. 18, p.326 - 360, 2020.
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