Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim – Ceará (foto do articulista)
Dentre as prescrições do Art. 215 da Constituição brasileira está a de que “o Estado garantirá a todos o [...] acesso às fontes da cultura nacional”. Mas, concretamente, o que e quais são as referidas fontes?
Trata-se de pergunta desafiadora por distintos motivos: não se conhece norma que as especifique; os comentadores da Constituição usam a expressão sem qualquer esforço definidor, deixando a falsa impressão de que todos sabem o seu significado; e não foi localizado julgado que, enfrentando a matéria, faça um esclarecimento jurisprudencial da questão.
Quando a situação assim se apresenta, abre-se espaço para a elaboração de uma compreensão do objeto, o que deve ser feito com todas as cautelas, de modo a contemplá-lo em justa medida, fugindo do amesquinhamento conceitual, mas também dos excessos, para evitar, respectivamente, a subutilização da norma, o que a torna excludente, ou seu esvaziamento, pela falta de delimitação.
Impõe-se, assim, como primeiro passo da investigação, o conhecimento dicionarizado do termo investigado, como forma de entender o seu significado originário. No caso, “fonte” significa substantivamente “água viva que brota da terra de forma contínua” e dentre os seus múltiplos sentidos figurados, para esta reflexão, convém destacar as ideias de “princípio, origem, causa”, que são compatíveis com a etimologia do termo, que vem do latim “fons, fontis”, significando “fonte, nascente”.
No texto constitucional atualmente vigente a palavra fonte, no singular ou no plural, tem 16 aparições, sendo uma delas na concepção literal de “fonte de água”, mais quatorze vezes no sentido de fonte financeira, e a que ora se investiga “fontes da cultura nacional”. Desse apanhado apenas reitera-se a ideia de uma estrutura, um bem ou uma manifestação que dá origem e abastece um dado objeto.
Em decorrência, as “fontes” sob investigação seriam os elementos geradores e fomentadores da “cultura nacional”, o que agrava o problema, pois a cultura, como poderiam dizer Francisco Varela e Humberto Maturana, é metaforicamente um ser autopoiético, que se faz, se transforma, se amplia, se amalgama a partir dos próprios movimentos, ou seja, qualquer que seja a manifestação cultural é fonte de cultura.
Assim, o elemento delimitador que sobra é o gentílico oculto da expressão investigada, ou seja, a dimensão de ser “cultura nacional” ou “brasileira”, o que não é muito alentador, se observada a dimensão dada pela Constituição ao patrimônio cultural do país, que abriga de forma muito ampla as contribuições “dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, sabidamente emanadas de povos dos mais distintos lugares do planeta, cada um com suas próprias matrizes culturais.
Nem mesmo uma interpretação pelo método histórico, a partir, por exemplo, de consulta aos anais da Assembleia Nacional Constituinte ajuda muito, pois nas discussões que os geraram quase não se falou do tema. A única menção encontrada está no debate ocorrido durante a 7ª Reunião Ordinária da Comissão da Família, da Educação, Cultura, e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, realizada em 2 de junho de 1987, durante a qual o Constituinte Fausto Rocha, falando em nome dos evangélicos, então calculados em “15% da população” do Brasil, para defender que a classificação etária das diversões públicas permanecesse no âmbito do Ministério da Justiça e, portanto, não fosse para o Ministério da Cultura, sob o entendimento de que este último não teria isenção, por estar “comprometido com as próprias fontes de criação da cultura”, exemplificando-as com a “plena liberdade de criação no teatro, [e] no cinema”.
Assim, a desafiadora prescrição constitucional segundo a qual o Estado garantirá a todos o acesso às fontes da cultura nacional, demanda reflexões adicionais e situações concretas para ser adequadamente entendida, mas de pronto se pode afirmar que não contempla um número ou um perfil delimitado de tais fontes.
Ademais, não corresponde a um mero reforço à expressão que a antecede, segundo a qual também deve ser assegurado o pleno exercício dos direitos culturais; acrescenta a compreensão de que não somente as liberdades devem ser asseguradas, por reforçar que o Estado tem o dever de fazer a entrega de bens e a prestação de serviços indispensáveis e visceralmente vinculados aos grandes objetivos jurídicos das práticas culturais, que são a paz, o desenvolvimento e a dignidade do ser humano, as verdadeiras seivas que devem brotar das fontes culturais.
Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP)
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