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A cena é clássica e conhecida da internet. Em trecho de "A Felicidade não se compra" (1946), Donna Reed, vivendo a personagem Mary Hatch, se aproxima irritada de uma vitrola e quebra o disco que tocava. O meme associado à cena, em geral, é sincronizado com algum hit ou música do momento que é reproduzida exaustivamente nos meios de comunicação, a ponto de deixar os ouvintes enervados pelas inúmeras e incontáveis vezes que se repetem refrões e melodias até o esgotamento. Em loop infinito, no Reels do Instagram, o meme de Donna Reed ecoa ao fundo "Late, coração cachorro, late, coração Auuuhhhh", até o fatídico momento em que o vinil se parte. É como reviver a culpa repetidamente no purgatório.
Esse refrão da música em questão, denominada "Coração Cachorro", sucesso das plataformas de streaming, lembrou uma outra, cujo título e o cantor estrangeiro não conseguia recordar. Até que a celeridade e a ligeireza das redes sociais viralizaram o vídeo de James Blunt no Tik Tok, cantando e dançando a sua canção "Same Mistake" (2007) – famosa balada que conquistou o Brasil durante a exibição da novela global Duas Caras – com um mix do clip de "Coração Cachorro", uma aproximação entre forró eletrônico e pisadinha, no qual vibra com os cantores cearenses Ávine Vinny e Matheus Fernandes uivando o verso sofredor. No final, o cantor inglês, de forma bem-humorada, diz que enviará os dados bancários aos colegas brasileiros.
Imediatamente, com a mesma rapidez que circulam os memes e as polêmicas na rede, surgiram questionamentos sobre plágio, respeito à autoria, arrecadação de direitos patrimoniais sobre execução pública, entre outros. Algo semelhante envolvendo a nova canção “Million Years Ago”, da cantora Adele e de Greg Kurstin, e a música "Mulheres" de Toninho Geraes, mais difundida na voz de Martinho da Vila, já tinha sido alçado como treta cultural do momento mais recentemente, antes desse debate.
O sucesso instantâneo e repentino foi composto por seis autores em Fortaleza (Daniel dos Versos, Fellipe Panda, PG do Carmo, Riquinho da Rima, Breno Lucena e Felipe Love). Exceptuado o controvertido trecho em que os cantores transformam parte de "Same Mistake" em latido canino numa sofrência interminável, a composição preencheria o requisito da originalidade, ou seja, ambas são obras distintas uma da outra.
Inicialmente, a editora Sony, representante de James Blunt, admitiu que se tratava de música autoral com um melisma. Não chegaria a ser uma versão. O uivo doído representaria uma citação. Entretanto, o cantor inglês cumpriu a promessa e extrajudicialmente iniciou a construção de um acordo para que figurasse, juntamente com os outros seis autores, como coautor de "Coração Cachorro". A Universal Music, que atua junto à editora Medalha, representante de quatro dos seis compositores, confirmou que Blunt figurará como autor recebendo 20% dos direitos autorais sobre a obra.
Este fenômeno da indústria fonográfica em que há mudanças ou incorporações de outras obras em canções não é exatamente novo. O curioso aqui é como a internet e o streaming possibilitaram rapidamente que um autor estrangeiro pudesse reconhecer a utilização da melodia de sua música em um ritmo popular num país distante e ganhar com isso num período de perdas para o mercado musical. Um "museu de grandes novidades" como diria Cazuza, se olharmos para as versões, traduções e adaptações que são feitas sem autorização no forró ou no sertanejo, a partir dos hits que fazem sucesso no mainstream internacional.
Em termos de direitos autorais, embora se possa argumentar que o latido inspirado em Blunt seja um pequeno trecho, ou seja, uma limitação para a qual a Lei de Direitos Autorais expressamente afasta a ofensa de violação da obra originária, no mercado da música é sempre temerário realizar esses usos livres provando que a obra nova não é mera reprodução e que não prejudica a exploração da canção anteriormente existente. Além de proteger a repercussão econômica, também a Lei de Direitos Autorais assegura direitos morais aos autores como os de reivindicar a autoria a qualquer tempo, de integridade e de modificação.
O fato também estimula o debate existente entre as concepções do que seja modificar e transformar uma obra. Os meios à disposição pela tecnologia da sociedade da informação fazem com que, antes de reproduzir obras originais, outras pessoas modifiquem-nas, dando origem a variadas formas de expressão da linguagem artística transformada. Importa, pois, de acordo com visão de José de Oliveira Ascensão (1), distinguir a transformação da modificação, esta última peculiaridade moral que não pode sair da esfera da titularidade do autor. A transformação criativa seria uma obra nova oriunda da primitiva só que adaptada a um novo suporte. A modificação seria apenas versão de uma obra original que não resulta em obra nova.
O artigo 7º, inciso XI, da Lei n. 9.610/98 traz alguns exemplos de transformações protegidas enquanto obras intelectuais novas que diferem entre si tal qual a tradução e a adaptação, bem como menciona a possibilidade de existência de outras formas que não as presentes no diploma autoral. No direito internacional, a Convenção de Berna, em seu artigo 2º, item 3, prescreve que também são protegidas, assim como as obras originais, sem prejuízo dos direitos do autor da obra original, as traduções, adaptações, arranjos de musicais e outras transformações de uma obra literária ou artística.
Do jeito que se encontra a nossa Lei de Direitos Autorais, principalmente nos artigos 28, 29 e 31, nas hipóteses de transformação, o autor da obra derivada necessita de autorização do titular da obra originária. Nesse sentido, ainda que o latido figure como pequeno trecho, é provável que nessas circunstâncias prevaleça, pelo viés privatista e proprietário da nossa legislação, a exigência da prévia e expressa autorização para incorporação da melodia do "auuuh".
Cuidado então, artistas, ao incorporar e se inspirar em onomatopeias, sussurros e gemidos alheios, pois, além de um coração partido, os bolsos podem tilintar menos do que desejariam.
*Rodrigo Vieira - Coordenador do Curso de Direito e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFERSA. Membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
1. Cf. Direito Autoral. 2 ed. ref. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
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