Os símbolos nacionais possuem previsão expressa na Constituição de 1988 e consistem na Bandeira, no Hino, nas Armas e no Selo nacionais. Eles objetivam representar a identidade nacional e fortalecer o espírito cívico que são valores e comportamentos relacionados à cidadania e aos direitos e deveres do cidadão perante a sociedade.
Os usos dos símbolos nacionais são regulamentados pela Lei nº 5.700/1971 que dispõe sobre a forma e a apresentação. A descrição detalhada e precisa dos elementos que compõem os símbolos nacionais e as solenidades envolvidas nos seus usos oficiais indicam a seriedade que o Estado atribui aos seus símbolos e, também, o seu desejo de construir uma sociedade alicerçada no lema “Ordem e Progresso”.
A seriedade atribuída aos usos dos símbolos nacionais não se resume a prever regras disciplinadoras da sua utilização e das solenidades em que eles são obrigatórios. A Lei estabelece as situações que configuram desrespeito à Bandeira Nacional, como mudar-lhe a forma e as cores, e ao Hino Nacional é vedado a sua execução com outros arranjos vocais ou instrumentais, salvo se autorizados pelo presidente da República. O desrespeito aos ditames da Lei nº 5.700/1971 que disciplina os usos dos símbolos nacionais é tipificado como contravenção penal, sujeitando os seus infratores à pena de multa.
A Lei nº 5.700/1971 editada durante o regime militar precisa ser interpretada e aplicada com base nos valores constitucionais atuais que asseguram as liberdades de expressão e artística, bem como a diversidade cultural. Neste sentido, as tentativas de impedir por quaisquer meios, inclusive por vias judiciais, que os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira se apropriem destes símbolos conforme seus valores culturais, como ocorreu com a tentativa do Ministério Público de impedir a veiculação da gravação do Hino Nacional em ritmo de forró [1], é negar a própria diversidade cultural existente no Brasil.
Nem mesmo uma interpretação sisuda da norma, daquelas de maior literalidade, conseguiria encontrar sustentação jurídica para tal propósito censor. Pois, defender as restrições previstas na norma em sua literalidade, sob o argumento de que é preciso respeitar as tradições e os valores cívicos, é não perceber que tal censura promove o efeito contrário, e impede que os diferentes grupos ressignifiquem e reconstruam constantemente seus laços com a nação.
Na contramão da liberdade de expressão tramitam no Congresso Nacional o PL nº 2.302/2022 [2] que criminaliza a conduta de destruir ou ultrajar símbolo nacional em público, e o PL nº 5.150/2023 [3] que criminaliza a confecção, distribuição e comercialização da Bandeira Nacional com cores e formas alteradas, buscando introduzir referidos comandos normativos na Lei nº 5.700/1971, que se mostra incompatível com a Constituição de 1988, e, portanto, não teria sido recepcionada, à semelhança do que já decidido pelo STF com relação à Lei de Imprensa editada durante o governo militar.
Desta feita, já passou da hora do STF ser instado a se pronunciar sobre a recepção da Lei nº 5.700/1971 pelo ordenamento jurídico brasileiro. A Suprema Corte Americana já enfrentou, desde o final dos anos 80, essa matéria no caso Texas v. Johnson [4] que entendeu que a lei do Estado Americano do Texas, semelhante a que se propõe no Brasil, de criminalizar o ato de queimar a Bandeira Nacional é violadora da liberdade de expressão e, portanto, inconstitucional.
O Brasil é rico em diversidade cultural e em ritmos musicais. O povo brasileiro é cheio de ginga e de riso farto. Até mesmo nas agruras da vida usa de piadas para melhor lidar com a dor e o sofrimento, ordena a sua vida não na métrica positivista que inspirou o lema estampado na Bandeira Nacional, mas segundo uma lógica própria e tão diversa quanto as diferentes culturas que se fazem presentes nesse país de dimensões continentais.
É preciso, contudo, ter claro que os símbolos nacionais identificam a República Federativa do Brasil e compõem a identidade cultural de um povo que se forma pela e na diversidade cultural, sendo inclusive desejável que este mesmo povo se aproprie dos símbolos nacionais conforme seus valores culturais para dar concretude aos valores de uma sociedade plural que deve assegurar a diversidade na unidade.
Nestes casos, caberia ao Estado apenas zelar, nos limites constitucionais e respeitadas as liberdades culturais, para não ocorrer abusos e usos ofensivos, mas com o olhar plural diante de uma sociedade culturalmente diversa, e sempre um controle posterior, e nunca prévio e nem criminalizador, sob pena de incorrer em censura.
Desta feita, as proibições legais de execução do Hino Nacional com arranjos e ritmos que aproximem e renovem os laços identitários entre os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira e os símbolos nacionais e os Projetos de Lei que objetivam criar sanções para os seus usos “indevidos” estão, inconstitucionalmente, dando sobrevida a um período autoritário e a uma legislação morta que não se coadunam com a realidade democrática atual e com os direitos fundamentais.
Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor em Direito. Professor da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA/UEA). É Autor do livro “Patrimônio cultural, democracia e federalismo” e coautor do livro “É disso que o povo gosta: o patrimônio cultural no cotidiano da comunidade”
Notas:
[1] TRF5. AC - Apelação Cível – 448066. Disponível em: https://www2.cjf.jus.br/jurisprudencia/unificada/
[2] Senado. Projeto de Lei n° 2303, de 2022 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154490
[3] Senado. Projeto de Lei n° 5150, de 2023. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/160672
[4] EUA. Texas v. Johnson, 491 U.S. 397 (1989). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/491/397/#tab-opinion-1958037
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