(Foto do site do IPHAN: Ritual Yaokwa do povo indígena Enawenê Nawê)
Esse texto foi a base da intervenção que o autor fez em evento híbrido homônimo, promovido no âmbito da programação científica da 18ª Reunião do Comitê Intergovernamental da UNESCO para o Patrimônio Cultural Imaterial, ocorrido em Kasane – Botswana, em 06/12/2023, coordenado pelo Professor Pier Luigi Petrillo (Unitelma Sapienza) e pela Professora Benedetta Ubertazzi (UNIMIB), ambos italianos.
Quando Paul Crutzen, com a autoridade de quem ganhou um Prêmio Nobel de Química, em 1995, popularizou o termo “antropoceno” [1], poderia estar coroando a presença do ser humano na Terra, colocando-o como protagonista de uma era geológica, que poderia ser a mais feliz, dada a racionalidade de que somos dotados.
Todavia, observou ser caracterizada por coisas terríveis, como a severa mitigação da biodiversidade, preocupantes mudanças climáticas, descaracterização e padronização de ecossistemas que, ao extremo, poderão até levar ao fim da vida no planeta.
Certamente esse quadro, por contraditório que aparente, decorre em parte da ideia de desenvolvimento, mas de um desenvolvimento baseado no imediatismo, no individualismo e na falsa consciência de que o ser humano pode reinar despoticamente sobre a natureza.
Este preocupante cenário impulsionou à reflexão e à ação, no sentido de se localizar o ponto de ruptura do ser humano para com o meio ambiente, bem como identificar as causas deste desastroso divórcio, para se buscar solucionar o problema.
Dentre as providências no plano internacional, notadamente no campo da cultura, consta a adoção de importantes documentos, como as Declarações e as Convenções sobre a Diversidade Cultural e sobre a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial.
No rol das premissas sob as quais se assenta a Declaração Universal da Diversidade Cultural (2002), por exemplo, consta “que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações” [2]. O texto da Convenção da Diversidade Cultural (2005) reitera a transcrita ideia, porém adverte para os riscos decorrentes dos “desequilíbrios entre países ricos e pobres” [3].
Por seu turno, o item 14 das linhas gerais de um plano de ação destinado a aplicar a Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural prescreve que se deve “respeitar e proteger os sistemas de conhecimento tradicionais, especialmente os das populações autóctones; reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais para a proteção ambiental e a gestão dos recursos naturais e favorecer as sinergias entre a ciência moderna e os conhecimentos locais”. [4]
Certamente, esse é o mais amplo canal de comunicação entre os documentos da diversidade cultural com os da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial (Declarações e Convenções). A Convenção para o PCI, por exemplo, determina que “só será tomado em consideração o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos existentes, bem como com a exigência do respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e de um desenvolvimento sustentável”. [5]
“Comunidades, grupos e indivíduos” é uma sequência mencionada por várias vezes na Convenção do PCI, revelando a grande prioridade que ela confere às relações humanas, ao diálogo intercultural, que se for feito com base nos valores mencionados tem o grande potencial de fomentar uma democracia culturalmente pluralista e ecologicamente sustentável.
A enorme rede multinível de reconhecimento e salvaguarda do PCI (internacional, nacional e subnacional), que não nasceu com a Convenção de 2003, mas que com ela se fortaleceu em muitas partes do planeta, é um contributo efetivo para minorar os efeitos negativos do chamado “antropoceno”, pois muitos dos patrimônios culturais ultrapassam fronteiras; outros resgatam relações de afeto entre a humanidade e a mãe comum, que é o planeta Terra; além daqueles reconhecidos pelo fato de favorecerem o respeito da humanidade relativamente aos outros seres vivos, compreendendo a fauna e a flora.
Vê-se, assim, que valorizar os patrimônios vivos da humanidade, seja no nível planetário ou local, constitui-se em importante elemento de conscientização para a busca de uma boa vida em coletividade, regida pelo respeito mútuo dos seres humanos e destes para com a natureza, comportamento que tem o potencial de reverter a tendência criticamente negativa que ora rege essa Era do Antropoceno.
Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)
Notas
[1] SCHWÄGERL, Christian (Autor), CRUTZEN, Paul PhD (Prólogo). The Anthropocene: The Human Era and How It Shapes Our Planet. Novo México – USA: Synergetic Press, 2014.
[2] Conferir em: Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural; 2002 (oas.org)
[3] Conferir em: Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais: texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006; 2007 (iphan.gov.br)
[4] Ver nota de rodapé 2.
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