Está em discussão, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, julgamento de tese jurídica acerca da propriedade de terras dos povos indígenas brasileiros, conhecida como “Marco Temporal”. Essa discussão, que tem como objeto a interpretação do Art. 231, da Constituição Federal de Brasil de 1988, opõe ruralistas às comunidades indígenas.
O referido artigo reconhece, além do direito de propriedade dos povos originários de terras que tradicionalmente ocupam, a sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” e imputa à União a demarcação, proteção e o fazer respeitar todos os seus bens.
Diante desse contexto de debate acerca de direitos reais de propriedade e da abrangência cultural do preceito constitucional, entende-se relevante também questionar se é pertinente falar de um marco temporal para os direitos intelectuais autorais indígenas no Brasil.
Antes de pormenorizar o questionamento acerca da propriedade intelectual referente às expressões culturais de povos indígenas, é importante compreender o que significa a tese do “Marco Temporal”. Esse é um argumento defendido por ruralistas, proprietários de terras agrícolas no Brasil, os quais afirmam que os povos indígenas só teriam direitos sobre as terras que ocupavam até o momento da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Para este grupo, o marco temporal se justificaria enquanto conferisse maior segurança jurídica acerca da propriedade de terras, inibisse conflitos fundiários e a violência a eles associada, possibilitando maior desenvolvimento econômico. Ademais, entendem que a dimensão territorial assegurada aos povos originários é suficiente para a sua densidade demográfica, além de argumentarem que a integração de indígenas à sociedade capitalista contemporânea não justifica que sejam associadas à terra a organização, os costumes, as crenças e as tradições. (SILVA; GUIMARÃES, 2022).
Os povos indígenas contestam essa deturpação interpretativa, defendendo o argumento do “Indigenato”, ou seja, de que além das terras comprovadamente ocupadas até o início da vigência constitucional presente, haveria territórios ainda a demarcar-se, tendo em conta o histórico violento de expulsão de terras, pelos quais as populações indígenas permanecem vivenciando. Para os povos indígenas, o argumento do marco temporal seria inconstitucional, sendo os seus direitos nomeadamente originários, porque antecedem até mesmo o consenso constitucional. Além disso, o marco temporal seria uma banalização da violência, na medida em que tornaria legítima a apropriação fundiária realizada de maneira forçada (SILVA; GUIMARÃES, 2022).
Como explicitado, o debate acerca da propriedade de terras tem influência no pleno usufruto cultural das populações indígenas. Estas têm sua organização social, seus modos de ser e de fazer, seus costumes, línguas, crenças e tradições associados ao espaço em que vivem ou no qual se originaram.
Afirmar que o trânsito urbano-rural de pessoas indígenas as desqualifica em relação à sua identidade e aos seus direitos é mais um ato de violência. O espaço da cultura é sempre um entre-lugar, um espaço de fronteira e de produção, como afirma Homi Bhabha, de possibilidades dialógicas, e não livre de conflitos (BHABHA, 2014). A interpretação que restringe o âmbito da cultura a uma essencialidade pura é, no mínimo, ingênua, pois desconsidera a própria possibilidade de um diálogo intercultural, valor primordial para a configuração de um estado democrático.
Importa, então, diante do referido debate, também falar sobre os direitos da propriedade intelectual dos povos indígenas, esses que dizem respeito aos seus conhecimentos tradicionais associados aos territórios que ocupam e às suas expressões culturais. Os primeiros estão fortemente associados a possíveis bens intelectuais objetos de patentes, por exemplo, quando se relaciona à sabedoria de um povo em relação aos usos medicinais de um recurso biológico presente em determinado bioma.
Por sua vez, as expressões culturais são associadas a uma possível proteção por meio de instrumentos do patrimônio cultural imaterial ou de direitos de autor que, em tese, seriam aqueles relacionados à dimensão intelectual e artística de determinado sujeito. No entanto, esse raciocínio está longe de ser pacífico. Para esta análise, chamaremos a atenção apenas aos direitos autorais.
Os direitos autorais têm sua origem, a partir da invenção da prensa móvel de Gutenberg, no século XV, quando o poder de cópia saiu do monopólio dos copistas e se disseminou pela possibilidade de impressão e reprodução indiscriminada. Essa possibilidade relaciona-se à propriedade do meio técnico ou capital, qual seja, a prensa.
Associado a essa nova tecnologia esteve a valorização do sujeito criador, o artista, intelectual ou cientista, que, pela materialização de sua obra, tomou para si o status individual de autor. Percebe-se a relação do desenvolvimento tecnológico e emancipador da autoria com a expansão do capitalismo e dos ideais iluministas, esses os quais têm, no individualismo, uma de suas bases filosóficas.
Diante desses pressupostos, desenvolveram-se duas correntes teóricas em relação à proteção autoral. De um lado, uma que privilegia a valorização do autor (Droit d’Auteur); do outro, da obra (Copyright). Ambas, no entanto, concebem a proteção autoral a partir de uma criação do espírito humano, pessoa física, que materializa a sua obra intelectual ou artística, em suporte tangível ou intangível.
A proteção do direito autoral será devida, de modo temporário, a partir do momento da publicação da obra. Essa ficção jurídica em relação a essa forma de propriedade intelectual tem sua justificativa inicial na recompensa ao esforço intelectual empreendido pelo autor, ao esforço financeiro do editor e na possibilidade de estimular o cenário cultural de determinada sociedade.
Foi esse o fundamento teórico abraçado pela Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei 9610/98 - LDA), que considera como “obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro” (Art. 7ª); autor como sendo “pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica” (Art. 11) e que prevê, em regra, um prazo de proteção patrimonial em relação ao autor e a obra. Conforme a redação da LDA, “os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil” (Art. 41).
Ao atrelar a proteção dos direitos autorais ao indivíduo, à publicação de uma obra e à data precisa da publicação, o sistema de proteção dos direitos autorais, no qual se inclui a legislação brasileira, não oferece direitos autorais às expressões culturais tradicionais. Essas têm, como característica, a criação coletiva, a transmissão intergeracional e, muitas vezes, a própria imaterialidade, quando são, por exemplo, manifestadas pela oralidade.
Verifica-se, pelos argumentos apresentados, que a determinação da data da publicação de uma obra de arte seria requisito fundamental para a constituição do direito de autor. Sendo a expressão cultural tradicional de origem remota, sem um marco temporal constitutivo, o direito autoral não é capaz de atender a essa proteção.
A LDA reconhece a sua própria inabilidade em proteger as expressões culturais tradicionais, fazendo ressalva para evitar o domínio público em relação “aos conhecimentos étnicos e tradicionais” (Art. 45, II). Essa ressalva, contudo, jamais foi disciplinada pelo Poder Legislativo brasileiro.
A ausência de um instrumento legislativo para reconhecer a proteção legal das expressões culturais tradicionais facilita apropriações indevidas, seja financeira, seja simbólica, restando apenas a proteção constitucional difusa dos direitos culturais como recurso interpretativo aos aplicadores do direito.
A disciplina da referida ressalva legal implica em reconhecer as identidades culturais dos povos indígenas e atender aos preceitos do Art. 231. Não apenas isso, implica em frear e corrigir o cenário de violência também imaterial e simbólica imposta aos povos originários, impedindo que a sua cultura seja expropriada por um marco temporal autoral que só tende a privilegiar a sociedade capitalista, individualista e excludente.
Maria Helena Japiassu M. de Macedo, Consultora Jurídica na RSLAW, em Direito da Arte e Propriedade Intelectual. OFCHAN/Itamaraty cedida ao Escritório do Ministério da Cultura no Paraná. Mestranda/Direito/UFPR. Membro do GEDAI/UFPR e do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Coordenadora do GT Arte da OAB/PR. Especialista em Propriedade Intelectual (UCAM), Museus, Galerias e Arquivos (Universidade Positivo), em Gestão Cultural e Captação de Recursos (Boston University). Certificada em Direitos Autorais (Harvard University). Escritora de literatura.
Referências:
[1] e [2] SILVA, A. B. O de; GUIMARÃES, N. Z. O que é marco temporal de terras indígenas? In: Politize. Disponível em: https://www.politize.com.br/marco-temporal/ Acesso em: 28 abr 2023.
[3] BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
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