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Por um Código do Patrimônio Cultural para o Brasil 



Um dos setores de políticas públicas mais caóticos do Brasil é o do patrimônio cultural, pois nele constata-se a prática de que os entes da federação atuam como e quando querem. Essa afirmação, apesar da sua gravidade, pode ser comprovada empiricamente (pela experiência), bem como cientificamente (por pesquisas). 


Em termos das práticas, quase que diariamente circulam notícias de esdrúxulas outorgas do título de patrimônio cultural, como a camisa 9 do time “x”, a caprinocultura, o sanduíche “tal”. Reversamente, se um bem cultural de comprovado valor histórico colide com algum interesse comercial, a probabilidade de que não seja protegido e até destruído é muito grande. 


Fora isso, mesmo onde existe legislação específica, não raro ela é completamente desconsiderada, como é o caso do reconhecimento de vários patrimônios culturais imateriais por lei federal, quando se deveria seguir o procedimento determinado pelo Decreto nº 3.551/2000.  


Tal é o caso da recentíssima Lei nº 15.092, de 7 de janeiro de 2025, que “reconhece como patrimônio cultural brasileiro as barracas de praia e a atividade desempenhada pelos barraqueiros da Praia do Futuro, em Fortaleza, Estado do Ceará”. Neste caso, apesar da omissão da expressão “patrimônio cultural imaterial”, os requisitos são os mesmos.  


De fato, esse tipo de lei esvazia as atribuições de entes e órgãos patrimoniais, como o IPHAN e seus equivalentes estaduais e municipais, emitindo a deseducadora mensagem de que o que eles fazem não tem valor e, portanto, não precisam ser criados ou, se já foram, podem ser extintos. 


Em termos científicos, é muito reveladora uma das metas do Plano Nacional de Cultura (PNC) de 2010-2024 que almejava um “sistema nacional de patrimônio cultural implantado, com 100% das Unidades da Federação (UFs) e 60% dos municípios com legislação e política de patrimônio aprovadas”, o que significaria, “ter leis e políticas de patrimônio cultural aprovadas em todos os estados e em 3.339 cidades do Brasil (60%)”. 


No apurado final da meta, com base na Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) e estaduais (ESTADIC) 2018, do IBGE, constatou-se que todos os estados, mas apenas “1.999 municípios possuem legislações de patrimônio aprovadas”, informação praticamente inútil diante da conclusão do Ministério da Cultura de que “não é possível medir o desempenho da meta pois não é possível aferir se entes federados possuem política de patrimônio”. 


De fato, a meta tal qual originariamente construída permitia prenunciar a sua inviabilidade, pois dependia da vontade de quase 5.600 entes estatais, tanto no que concerne à produção normativa, mas principalmente quanto à efetivação de políticas públicas, dada a autonomia que possuem, por força da Constituição. 


De fato, qualquer meta será muito mais facilmente atingível em sua plenitude se forem focados campos em que a titular do Plano Nacional de Cultura, a União, tenha plena governança, ou seja, dependa apenas de si própria.  


Esse lembrete evidencia o dever de ela dotar o país de uma legislação patrimonial válida nacionalmente, algo que é constitucionalmente possível, dado que legislar sobre normas gerais de patrimônio cultural é uma competência concorrente da União com os Estados (Art. 24, VII e §§), cabendo aos Municípios “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual” (Art. 30, IX). 


Convém lembrar que legislar sobre patrimônio cultural vai muito além do ato de tombar imóveis; a esse respeito, de acordo com a Constituição, “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” (Art. 216, § 1º). 


A partir dos elementos vistos, cabe perguntar: como a União pode estabelecer algum grau de regência harmônica entre dezenas de instrumentos protetivos, centenas de concepções patrimoniais, milhares de entes políticos e milhões de comunidades, atuando em seus limites constitucionais, sem ferir qualquer autonomia, nem mesmo por indução, mas apenas cumprindo seu papel constitucional? 


Uma resposta seguramente seria a de que o Brasil adotasse seu próprio Código de Patrimônio Cultural, o que daria ao país uma legislação sistêmica na matéria, garantido, por parte da União, a oferta de normas gerais a todos os Estados e Municípios, o que, na expectativa mais modesta, abrandaria sensivelmente o caos normativo e institucional que, como visto, perpassa esse assunto. 


Se criar o código patrimonial tivesse sido uma meta do primeiro PNC, a apuração do resultado, depois de 14 anos de vigência do Plano, poderia ter sido menos melancólica, ao contrário, o país poderia estar colhendo os frutos da sua aplicação.  


A boa notícia é que nem tudo está perdido, pois um novo PNC está em elaboração e, quiçá essa sugestão chegue aos responsáveis, para que ao menos considerem essa possibilidade, já de todo testada na França, na Itália e em muitos outros países, se não com o nome de código, com a designação de lei geral do patrimônio cultural ou algo próximo disso. 

 

Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP) 

 

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