*Imagem: Brigitte ; CC BY.
No mês de maio deste ano, o Ministério da Cultura italiano tornou público um projeto para a reconstrução e reforma da da Arena del Colosseo 1. O anfiteatro do Coliseu é um dos monumentos históricos mais visitados da Itália e tem mais de dois mil anos de idade. Por ser considerado pela comunidade científica de inigualável e fundamental importância para a humanidade, figura, juntamente com demais monumentos da antiguidade do Centro Histórico de Roma, na Lista de Patrimônios Mundiais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) 2.
Ao custo de 18 milhões de euros (cerca de R$ 108 milhões) 3, o projeto prevê a instalação de um piso retrátil sobre as câmaras subterrâneas da arena, de modo a tentar dar aos visitantes a sensação que tinham os gladiadores ao olharem para o público nas arquibancadas.
O projeto, que prevê também futuras reencenações de espetáculos de gladiadores, tem sido contestado por alguns arqueólogos e especialistas. Apesar de a diretora do Coliseu, Alfonsina Russo, ter afirmado, em entrevista coletiva, que a obra “devolverá ao público a mesma visão que as pessoas tinham durante a antiguidade” 4, certos especialistas em patrimônio divergem dela e entendem que as salas subterrâneas como estão fazem parte da percepção e visão histórica do monumento, de modo que refazer a cobertura servirá apenas para aproximar o Coliseu da artificialidade de Las Vegas.
O professor de arqueologia da Universidade de Foggia e presidente de mérito do Conselho Superior dos Bens Culturais e Paisagísticos da Itália, Giuliano Volpe, por exemplo, apesar de ser a favor de reformas no Coliseu, “espera que essa nova configuração do Coliseu não seja apenas em função do turismo de massa” 5. Afinal, já existe no Coliseu, há muitos anos, uma plataforma de madeira que reconstrói uma pequena porção do piso e que é acessível aos turistas que participam da visita guiada ao monumento.
As divergências de opinião apontam, na verdade, para as diferentes correntes existentes há anos a respeito do tratamento a ser dado ao patrimônio histórico, de sua conservação e de sua restauração. Até aproximadamente o século XVIII, os monumentos e construções arquitetônicas eram transformados organicamente, de maneira paulatina, por meio de alterações e acréscimos adicionados ao longo dos séculos, em razão de necessidades práticas, como a de reconstruir partes desgastadas, consumidas em incêndios ou de alterações no gosto estético.
Consequentemente, as construções passaram a conter muitas camadas históricas. Como exemplos, podemos citar a mundialmente famosa Basílica de São Pedro, em Roma, construída principalmente no Renascimento, mas que recebeu acréscimos em outros séculos, acumulando, também, obras maneiristas e barrocas. É o caso também da incrível Basílica de San Giovanni in Laterano, também em Roma, que antecedeu a Basílica de São Pedro na função de residência papal, que conta com fundações medievais e sensacionais adições renascentistas, barrocas e neoclássicas ao longo de cinco séculos. Essas camadas foram sendo harmoniosamente sobrepostas umas às outras, século após século.
No século XIX, o monumento histórico entrou em sua fase de consagração e o debate acerca do restauro se encontrava, basicamente, dividido em duas doutrinas: uma intervencionista, que predominou no conjunto dos países da Europa continental e outra, anti-intervencionista, característica sobretudo inglesa 6. Nesse contexto, o artista e intelectual inglês John Ruskin (1819 – 1900) entendia que edifícios históricos não deveriam ser restaurados, devendo seguir seu ciclo de vida 7.
Na corrente oposta, estava o famoso arquiteto e restaurador francês Eugène Viollet-le-Duc (1814 – 1879), responsável pela restauração de notáveis construções medievais francesas, como a Basílica de Saint-Dennis e a Catedral de Notre-Dame, ambas em Paris. Essa última foi construída no período medieval gótico e, como de praxe, ganhou vários acréscimos e alterações nos séculos posteriores.
Em sua reforma, contudo, Viollet-le-Duc recebeu diversas críticas por demolir tudo o que tinha sido acrescentado ao longo dos séculos e que não lhe parecia gótico, como as estruturas neoclássicas de mármore, e por colocar, em seu lugar, o que ele julgava ser um “gótico puro”, como a flecha e a torre do sino, que haviam sido removidas entre 1786 e 1792, por serem instáveis ao vento 8. Em seu furor, de um intervencionismo militante, pretendia remover, também, as adições ao coro feitas sob o reinado de Luís XIV, mas foi impedido pela comissão responsável pelo projeto. A Catedral perdeu, assim, várias de suas camadas históricas.
É inegável que Viollet-le-Duc foi um dos primeiros estudiosos a refletir sobre o conceito de restauração, sua metodologia e limites, e que ele mesmo ponderou que um restauro poderia levar uma construção a “um estado que pode não ter existido nunca em um dado momento” 9, mas é fato que as intervenções “purificadoras” de Viollet-le-Duc e de outros restauradores do século XIX acabaram por criar uma noção congelada de patrimônio histórico, em que os bens culturais estão descolados do orgânico da vida ─ devem ser vistos, mas não podem ser tocados, pois estão fossilizados e não acompanham as modificações pelas quais as sociedades passam. Talvez seja justamente essa visão que faz com que as pessoas de hoje sintam que não têm nenhuma relação com o patrimônio histórico e que tais bens culturais não fazem parte de suas vidas.
Essa, infelizmente, parece ser a visão de patrimônio histórico que continua a predominar em algumas restruturações relevantes na atualidade, como a recente restauração da própria Catedral de Notre-Dame de Paris. Após o lamentável incêndio ocorrido em 2019, foram utilizados mil carvalhos históricos, cortados por toda a França, para refazer a estrutura do teto, apesar de, modernamente, existirem materiais que gerariam menor impacto ambiental 10 (o que, inclusive, estaria muito mais em linha com o documento que rege o tema, a Carta de Atenas para a Restauração de Monumentos Históricos 11).
A própria Unesco já desclassificou alguns monumentos e os retirou da Lista de patrimônio mundial por entender que as construções modernas restaram por desfigurar o lugar histórico. Essa semana foi o porto comercial de Liverpool, mas o Comitê do Patrimônio Mundial já tinha removido, em 2007, o santuário Oryx árabe, em Oman, e o Vale do Elba em Dresden, na Alemanha, em 2009, após a construção de uma ponte de quatro pistas no coração desta paisagem cultural, “o que significa que o local não conseguiu conservar o valor universal excepcional para o qual foi inscrito 12”.
Obviamente, como bem recorda Giuliano Volpe 13, o monumento é um organismo vivo, cujas funções mudam muito com o tempo. Seria, dessa forma, impensável que não se pudesse fazer alterações, face às necessidades e também às inevitáveis e positivas mudanças de ideias e visões culturais. Em vista disso, espera-se que a recolocação do piso do Coliseu não signifique recriar algo como se imagina que era, apagando todas as transformações ocorridas nos séculos posteriores, apenas para que alguns turistas possam tirar selfies passageiras, fantasiando serem gladiadores, não se tratando nem de manutenção, nem de restauração, mas sim de uma pura criação contemporânea de uma ideia de monumento histórico.
Felizmente, aqui e ali há iniciativas que visam descongelar a noção de patrimônio histórico e aproximar os vivos dos bens culturais deixados pelos que já se foram. Em terras brasileiras, surpreendentemente, a reforma do Museu do Ipiranga, com conclusão prevista para 2022, está sendo inovadora e pretende integrar os visitantes ao Museu, por meio de uma área confortável de acolhimento, novo mobiliário, escadas rolantes, sala de exposições temporárias, salas para atendimento do programa educativo, projetos multimídia, café, auditório e loja, tornando o Museu compatível com os grandes museus internacionais, em linha com as mais modernas concepções de patrimônio histórico e de museologia 14.
Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e advogada do Studio MATTES (www.studiomattes.com.br)
Luciana Amendola Imbriani Kreidel é advogada empresarial, especializada pela Universidade de Salamanca, pela Fundação Getúlio Vargas, pela ESPM e pelo Insper e pesquisadora independente em arte, história e cultura.
(1) Mais informações em sobre o projeto em https://cultura.gov.it/arenacolosseo
(3) Vide https://cultura.gov.it/arenacolosseo.
(6) Para aprofundar mais sobre o tema: Françoise CHOAY. A alegoria do patrimônio, UNESP, 2001
(7) Restoration, so called, is the worst manner of Destruction. It means the most total destruction which a building can suffer: a destruction out of which no remnants can be gathered. (…) It is impossible, as impossible as to raise the dead, to restore anything that has ever been great or beautiful in architecture”, in John RUSKIN. The Seven Lamps of Architecture, G. Allen Publisher, vol. 8, 1880, p. 193.
(8) https://www.notredamedeparis.fr/decouvrir/architecture/la-fleche; e Olivier MIGNON, Olivier, Architecture des Cathédrales Gothiques, Éditions Ouest-France, 2015, p. 18.
(9) “Le mot [restauration] et la chose sont modernes: restaurer un édifice, ce n’est pas l’entretenir, le réparer ou le refaire, c’est rétablir dans un état complet qui peut n’avoir jamais existé à un moment donné", in David SPURR, Architecture and Modern Literature, University of Michigan Press, 2012, p. 148.
(14) http://museudoipiranga2022.org.br/novo-museu
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