O termo Réveillon é oriundo do francês, que significa “acordar” ou “despertar” e se refere ao período de transição entre o velho e o novo ano. A celebração recebe influências de diferentes tradições culturais, sendo, em grande parte, adaptada por práticas europeias e, entre nós, reflete características multifacetadas.
Há quem veja a celebração como uma festa pagã. Também há quem siga as crendices para boa sorte e as tradições religiosas: comer sementes de romã e uvas verdes, vestir branco, comer carne de porco ou peixe ao invés de aves que andam para trás são alguns exemplos da primeira, enquanto enviar flores para Yemanjá no mar são exemplos de tradições da religião da Umbanda.
Fato é que o Réveillon agrega valores religiosos e culturais a múltiplos marcadores naturais de tempo, proporcionando esperança a milhares de pessoas por mais uma oportunidade de “despertar”. Entre nós, é uma das celebrações mais aguardadas do ano, marcada por festas, fogos de artifício e, especialmente, pela conexão com o mar e com o misticismo que o cerca.
Celebrado como um momento de reflexão e de pedidos para o ano vindouro, o evento abriu espaço para a realização de práticas culturais relacionadas à religiosidade umbandista, produto da convivência entre o catolicismo europeu e as religiões de matriz africana praticadas por povos escravizados que foram trazidos para o Brasil imperial, sendo Iemanjá um dos exemplos mais evidentes desse sincretismo religioso.
Iemanjá é adorada na Umbanda, que, conforme ensina Renato Ortiz em A morte branca do Feiticeiro Negro, é uma religião eminentemente brasileira, construída a partir da síntese resultante das crenças afro-brasileiras com as espíritas, sendo a deusa reconhecida como a mãe de todos os orixás e a protetora dos pescadores, dos navegantes e dos povos que dependem do mar.
A Umbanda tem sua origem no século XX, quando o Kardecismo passou a mesclar elementos das tradições afro-brasileiras e a professar e defender publicamente essa fusão, que remete aos cultos às entidades africanas, aos caboclos (espíritos ameríndios), aos santos do catolicismo popular e às entidades do panteão kardecista.
Sobre o tema, Estela Noronha afirma em sua dissertação de mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que entre as décadas de 1920 e 1930, Rio de Janeiro e São Paulo foram lugares onde o desenvolvimento da Umbanda aconteceu de forma mais acentuada.
No contexto do Réveillon, a data de 31 de dezembro, em especial, passou a ser marcada para umbandistas e simpatizantes pela oferta de presentes para a deusa, que simbolizam pedidos de paz, saúde, prosperidade e proteção para o ano seguinte. Essas oferendas geralmente são feitas no mar, com flores, perfumes, velas e outros itens simbólicos que são levados pelas ondas em uma espécie de ritual de entrega.
O bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, possui grande importância simbólica nesse rito de passagem, seja pela beleza de sua praia, que lhe concedeu a alcunha de “Princesinha do Mar”, seja pelas manifestações culturais que se realizam à beira-mar, de modo que o crescimento das oferendas na região por ocasião do Réveillon tem sido atribuído desde então à identidade dos umbandistas.
Em A força da fé, Denise Barata ensina que o culto a Iemanjá na passagem do ano remonta à década de 1930, graças ao trabalho de Tancredo da Silva Pinto (pai de santo, escritor e compositor), uma grande liderança negra do Rio de Janeiro. Apesar de não conseguir realizar as primeiras festas para a rainha do mar nas áreas ocupadas pelas classes médias e altas (a zona central do Rio de Janeiro), não deixou de realizá-las em outras áreas, até que as práticas começaram a se expandir para Copacabana.
Segundo a autora, a partir da década de 1980, passou-se a perceber o incômodo do setor hoteleiro de Copacabana com a presença dos devotos de Iemanjá à beira-mar, que, na sua grande maioria, era composta por negros/as e pobres, pois, segundo os empresários, a cena “prejudicava” a frequência de turistas, que buscavam uma festa mais requintada e “civilizada” para a passagem do ano.
O hotel Le Méridien, situado na praia de Copacabana, passou a realizar espetáculos pirotécnicos em forma de cascata que descia do alto de seu prédio, como forma de atrair pessoas para a festa do dia 31 de dezembro. Tal iniciativa motivou os restaurantes da orla a organizarem espetáculos de queima de fogos. Com a expansão dos eventos, em 1993, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro resolveu instalar palcos na areia da praia de Copacabana para comportar com segurança a realização de grandes espetáculos, afirma Denise Barata.
Desde então, o que se percebe é que o mar, como lugar de memória e que outrora ocupava um papel central nas tradições afro-brasileiras, não apenas como uma fonte de subsistência, mas também como um bem sagrado, onde se realizam práticas culturais relacionadas a rituais de fé que unem passado, presente e futuro, e que carregam lembranças e tradições de um povo que luta para preservar suas raízes culturais, tem sido utilizado como local estratégico para atrair turistas a eventos midiáticos e “glamorosos”.
O Réveillon realizado na praia de Copacabana, evento de grande celebração e reafirmação das tradições culturais no Brasil, e o mar, como lugar de memória e ponto de conexão entre o mundo material e o espiritual, aos poucos são ressignificados e desafiam a preservação da memória cultural de Iemanjá e de outras manifestações afro-brasileiras.
O turismo de massa e a comercialização do evento têm estigmatizado os aspectos religiosos e espirituais das festas, transformando-as em grandes espetáculos a serviço potestativo do capital.
Na contemporaneidade, a construção desses referenciais como lugares de memória assume, segundo o historiador francês Pierre Nora, uma tentativa dos povos de preservar os laços afetivos do passado, cada vez mais fadados ao esquecimento, sobretudo diante da globalização.
Locais ou manifestações que remetem ao passado histórico, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir bens importantes para a memória, para o sentimento de pertencimento do grupo e para a realização de práticas e manifestações culturais nos espaços simbolicamente construídos e possuem proteção jurídica.
A Constituição Federal do Brasil, em seu art. 215, § 1º, afirma que “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Já o art. 216 da Carta Magna afirma que “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
Pela simples leitura das duas disposições constitucionais, pergunto: O que o Estado do Rio de Janeiro, como unidade matriz da Umbanda no Brasil, tem feito para proteger as manifestações culturais que se realizam em seu território?
O Réveillon no Brasil, especialmente aquele que se realiza em Copacabana, que é vitrine cultural e cartão postal para o exterior, mais do que uma simples festa de fim de ano, é um momento de reafirmação das tradições culturais e religiosas que compõem a identidade tipicamente brasileira, diante de sua diversidade.
A relação com o mar e com Iemanjá fortalece a conexão do nosso povo com suas raízes e forma um importante patrimônio cultural imaterial brasileiro, digno de preservação, proteção e promoção.
Renê Iarley da Rocha Marques, Doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Vale do Acaraú e em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Advogado e Professor universitário da UNINTA Tianguá. Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor dos livros O sistema de garantias no Brasil para a defesa dos direitos culturais dos povos indígenas (Dialética, 2023) e Nós Bambeia mas não arreia: história, memória & cultura do povo indígena Tapuya Kariri na Serra da Ibiapaba e sua luta por direitos (Dialética, 2024)
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