(Foto: Divulgação Portal ULBRA)
A separação de poderes que vem sendo abordada desde a Antiguidade, como o fez Aristóteles em “A Política”, teve, na Modernidade, uma versão sistematizada por Montesquieu no não menos clássico “O Espírito das Leis”. Na versão do barão, trata-se de técnica imprescindível para a limitação do exercício do poder. É elemento indispensável em toda Constituição, tanto que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é enfática ao afirmar que a sociedade em que “não esteja assegurada a garantia dos direitos e a separação dos poderes não tem Constituição”.
Todas as constituições brasileiras asseguram a separação dos poderes, ainda que apenas no plano formal, como ocorreu com aquelas que foram outorgadas. A fórmula constitucional adotada em 1988 é a de que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si. Dessa estruturação deflui a presença de funções típicas e atípicas em que, tendo em mira as leis, ao Executivo cabe executá-las, ao Legislativo elaborá-las e ao Judiciário a função de, com base nelas, julgar imparcialmente os conflitos (jurisdicionalmente).
Contudo, na seara da proteção do patrimônio cultural não é incomum o Legislativo se utilizar da edição de leis de efeitos concretos com o escopo de promover o tombamento de bens culturais, medida cuja doutrina reputa ser um ato administrativo próprio do Executivo e, por esse motivo, tem impulsionado este Poder a questionar perante o Judiciário a constitucionalidade de referidas leis.
Neste campo de atividade, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, recentemente, o julgamento da ADI 5670 que apreciou a constitucionalidade da Lei nº 312/2016 do Estado do Amazonas que promoveu o tombamento legislativo de 29 edificações de projetos arquitetônicos elaborados por Severiano Mário Porto, conhecido como o “arquiteto da floresta” e a quem é atribuída a concepção de modelo de técnicas inovadoras de arquitetura que, ademais, une técnicas desenvolvidas por ribeirinhos e caboclos.
A Suprema Corte concluiu pela constitucionalidade da referida lei, firmando o entendimento de que ela produz efeitos concretos, “como o ato acautelatório de tombamento provisório a provocar o Poder Executivo local, o qual deverá perseguir, posteriormente, o procedimento constante do Decreto-Lei 25/1937, sem descurar da garantia da ampla defesa e do contraditório”.
No entanto, o aspecto realmente inovador dessa decisão é a admissão de que o Executivo está compelido a dar seguimento ao procedimento tendente a culminar no tombamento definitivo, mas não está vinculado à declaração do reconhecimento do valor cultural do bem tombado provisoriamente pelo Legislativo com a edição da lei de efeitos concretos.
Assim, o STF reconheceu pelo voto do Ministro Ricardo Lewandowski, Relator da mencionada ADI 5670, uma das teses sustentadas em artigo científico, publicado na Revista Direito Ambiental e Sociedade (RDAS), de autoria de Humberto Cunha Filho e Allan Magalhães (o signatário deste artigo), de que como a lei de efeitos concretos assemelhasse materialmente ao ato administrativo, ela pode ser revista pelo Executivo, no que toca a aferição do valor cultural do bem tombado, reconhecendo a relevância da distinção entre lei formal e lei material.
Neste sentido, a jurisprudência do STF dá um importante passo na harmonização da atuação dos poderes Executivo e Legislativo na defesa do patrimônio cultural pelo tombamento, preservando para cada um deles o exercício das suas funções típicas. Com isso, espera-se que legados arquitetônicos valorosos, como o de Severiano Mário Porto sejam protegidos.
Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”
Comments