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Trabalhadores da Cultura, Uni-vos! – Cultura e estado de emergência em Portugal

Atualizado: 5 de ago. de 2020


 

[...]

- Você continua jejuando? – perguntou o inspetor. - Afinal quando vai parar?

- Peço desculpas a todos – sussurrou o artista da fome; só o inspetor, que estava com o ouvido co-lado às grades, o entendia.

- Sem dúvida – disse o inspetor, colocando o dedo na testa, para indicar aos funcionários, com isso, o estado mental do jejuador. - Nós o perdoamos.

- Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum – disse o artista da fome.

- Nós admiramos – retrucou o inspetor. - Por que não haveríamos de admirar?

- Mas não deviam admirar – disse o jejuador.

- Bem, então não admiramos – disse o inspetor. - Por que é que não devemos admirar?

- Porque eu preciso jejuar, não posso evitá-lo – disse o artista da fome.

- Bem se vê – disse o inspetor. - E por que não pode evitá-lo?

- Porque eu – disse o jejuador, levantando um pouco a cabecinha e falando dentro da orelha do inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um beijo, para que nada se perdesse. - Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.

Um artista da fome – Franz Kafka


 

Nas paredes do apartamento em que morei pela primeira vez em Portugal, havia um cartaz cujos desenhos me chamavam a atenção. Em uma exposição no Centro Cultural de Belém, voltei a encontrá-lo ocasionalmente junto com outro que continha as seguintes inscrições: “A cultura é a liberdade do povo”. Era a expressão de ordem do Programa de Dinamização Cultural da Revolução dos Cravos. Palavras de esperança que representam a derrota do salazarismo e o fim do colonialismo imperialista histórico português. Um anúncio do fim da censura e do obscurantismo na cultura; prenúncio da Assembleia Constituinte que resultaria na Constituição de 1976.


Desde então, com rápido episódio de Estado de Sítio durante o processo revolucionário, Portugal não recordava viver sob regime excepcional, só que desta vez ocasionado não por um regime político autoritário, mas por um inimigo comum da humanidade: a pandemia da doença COVID-19, fruto da proliferação do novo corona vírus Sars-Cov2. Portugal decretou Estado de Emergência em razão da calamidade de saúde pública que se alastrou na Europa. Em regra, como nas democracias ocidentais constitucionais, a exceção ocorre sob limites jurídicos, muito embora as autoridades legítimas para instaurá-la possam igualmente suspender e restringir direitos fundamentais.

Embora os direitos à cultura, à fruição cultural e à liberdade de criação cultural protegidos pela Constituição de 1976 não estejam diretamente listados dentre aqueles suspensos durante o Estado de Emergência, foram duramente afetados pelas medidas de restrição da liberdade de circulação de pessoas e das liberdades econômicas, mormente as que se referem ao encerramento de estabelecimentos e eventos. Entretanto, se por um lado os tempos excepcionais não suspendem a dimensão objetiva da norma constitucional programática portuguesa cujo foco é o acesso à cultura, garantido por meio de apoios estatais com colaboração dos agentes culturais de toda ordem, em vistas à democratização cultural, por outro exigem que essa acessibilidade seja mantida e reinventada, adequada para o período.

Além disso, não há acesso sem criação, sem fazer cultural, sem o sangue, o suor e as mentes dos trabalhadores da cultura de quaisquer linguagens e fases de suas diferentes cadeias, cujos direitos se encontram limitados em consequência da inexistência de atividades culturais e artísticas presenciais, de contato com o público.

A área da cultura é considerada como secundária em qualquer parte do mundo, supérflua, desimportante, não obstante os discursos e as narrativas políticas e das políticas públicas reservarem a ela um lugar especial para o desenvolvimento humano. É o primeiro local no qual há a retirada, remanejamento ou deslocação de recursos financeiros quando há crises econômicas, seja no orçamento fiscal do Estado ou na planilha das empresas. Os mercados simbólicos amplos, a indústria cultural, as mídias eletrônicas e digitais devem dar conta das demandas de acesso. No momento, é isso que coloca foco para importância da cultura no tempo que antes era tempo livre e agora obrigatoriamente ocioso.

Entretanto, enquanto direito humano e constitucional, o Estado de Emergência deve conjugar esforços cooperados para que os tempos não signifiquem paralisia. A COVID-19 não cancelou a cultura, ela continua e precisa acontecer. Cada área que expressa sua diversidade e cada tipo de agente cultural demanda, neste momento, atenções especiais, de acordo com as assimetrias e desigualdades do setor. Este é o instante em que não se pode ignorar as diferenças sociais entre os atores culturais, entre os trabalhadores formais e informais, entre os tamanhos das instituições e de empresas privadas. Sem isso, não há como equacionar necessidades. Aliás, é tempo de deixar os diagnósticos um pouco de lado, para movimentar recursos e ações intensivas para proteger, apoiar e subsidiar a cultura e seus agentes. O futuro é incerto, mas a hora de ação é agora em meio à crise.

O dever geral de recolhimento domiciliário (isolamento social) decretado pelo Estado de Emergência, para conter o contágio da COVID-19, atingiu de forma direta e indireta as atividades culturais e artísticas. O regulamento do Governo suspendeu temporariamente o funcionamento de equipamentos culturais públicos e privados (teatros, cinemas, casas de espetáculos, bibliotecas, museus, galerias etc.) e a realização de eventos (desfiles, festas populares, congressos, shows etc.), referendando a decretação presidencial do encerramento imediato desses estabelecimentos, a partir do início de sua vigência (19 de março), como medida de prevenção para evitar aglomerações humanas e, consequentemente, a proliferação da COVID-19.

Antes disso, a Direção-Geral de Saúde já havia produzido orientação ainda no final de fevereiro sobre cancelamento de eventos de massa. Com a decretação do Estado de Alerta, em 13 de março, alguns dias antes do Estado de Emergência, a agenda cultural portuguesa estava comprometida com o cancelamento e o adiamento, principalmente de espetáculos. Desde essa época, os trabalhadores da cultura em Portugal sentem os impactos da pandemia que ocasionaram a interrupção da economia da cultura. Ainda que, após o fim do Estado de Emergência, paulatinamente as atividades culturais retornem, o medo e o risco do contágio imperarão sobre o público e esses setores.

De acordo com o EuroStat, organismo de estatísticas da Comissão Europeia, a economia da cultura abrange dez domínios (Arquitetura, Arquivos, Artes Performativas, Artes Visuais, Artesanato, Audiovisual e Multimídia, Bibliotecas, Livros e Imprensa, Patrimônio Cultural e Publicidade) e seis funções (Criação, Disseminação/Comércio, Educação, Gestão/Regulação, Preservação, Produção/Edição) dos quais Portugal parte para classificar as atividades culturais e criativas no âmbito econômico.

Segundo as pesquisas mais recentes do Instituto Nacional de Estatística de Portugal do ano de 2018, estima-se que o setor cultural emprega mais de 130 mil pessoas, representando mais de 2,7% das vagas de trabalho no país. Esta quantidade de pessoas está a serviço de mais de 60 mil empresas, e é responsável na economia portuguesa por um volume de negócios que ultrapassa 6 bilhões de euros anuais. Ainda assim, Portugal, infelizmente, ocupa o quinto lugar, no ranking da União Europeia, dos países que menos empregam na área cultural.

Segundo pesquisa realizada entre 18 e 26 de março deste ano pelo CENA-STE, Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos, mais de 80% dos trabalhadores que responderam a questionário (cerca de 1300) e tiveram suas atividades interrompidas são autônomos (aqui independentes). Diante da incerteza sobre o fim da pandemia e de eventual retorno ao trabalho, os cancelamentos e adiamentos ultrapassam o período de decretação do Estado de Emergência e possíveis renovações, ou seja, os meses entre março e maio de 2020. Estima-se que ocorreram entre os meses de fevereiros e abril mais de 25.000 cancelamentos. Alguns eventos foram reagendados para o próximo ano.

O decréscimo nas receitas de bilheterias não afeta tão somente às estruturas de funcionamento de instituições culturais, mas igualmente a fonte de renda do precariado da cultura. O cenário dos postos de trabalho na cultura em Portugal não difere da regra geral que opera na maior parte dos países do globo, é dominado pela informalidade, flexibilização das relações laborais, além das características típicas que são trabalho por projetos e a intermitência. Há também um forte de vínculo de dependência do apoio estatal que se materializa em recursos destinados a projetos e ações de diversos agentes (artistas, intérpretes e executantes, autores, produtores, promotores de espetáculos).

A pandemia reforça a fragilidade da proteção ao trabalho nos setores culturais. A maior parte dos trabalhadores são independentes (chamados de “recibos verdes”), ou seja, não possuem vínculo empregatício com o seus contratantes. São considerados prestadores de serviços, profissionais liberais autônomos. Em Portugal, se sujeitam a um regime severo de contribuições à Seguridade Social que está se demonstrando insuficiente para socorrê-los. Sem falar naqueles trabalhadores independentes que se sujeitam às regras de subordinação hierárquica laboral, mas por burla à lei, são pagos pelos empregadores como prestadores de serviços (falsos recibos verdes), não acessando no mesmo nível a proteção social a que empregados com contrato de trabalho tem direito, como assistência à doença e ao desemprego. Nem deixar de mencionar os que estão à margem do enquadramento em quaisquer dessas categorias, como muitas vezes está o trabalho informal e irregular do imigrante.

Embora haja uma identidade entre essa multiplicidade de trabalhadores, a cultura, a heterogeneidade das linguagens artísticas e de seus auxiliares tem mais em comum características que nessa época deixam suas fragilidades expostas e agravadas como a intermitência do trabalho, remuneração sazonal, baixa e direta, instabilidade, irregularidade e sazonalidade das ocupações, provisoriedade, eventualidade, não-habitualidade e ausência de regime específico de seguridade social.

De outro modo, as medidas mais gerais aplicadas pelo Governo de António Costa (Partido Socialista), em atenção aos Decretos de Emergência do Presidente Marcelo Rebelo (Partido Social Democrata), para salvaguardar os direitos dos trabalhadores portugueses e evitar demissões, não alcançam a situação real dos setores culturais. Medida como a obrigatoriedade da adoção do teletrabalho, durante o período, não pode ser aplicada a todas as áreas culturais de maneira indistinta. Outra medida adicional de apoio à economia anunciada pelo Governo como o lay-off tem pouca aplicabilidade no setor cultural, dado o retrato da natureza dos trabalhadores desse campo, apesar de ser poderoso instrumento de prevenção de demissões em massa.

O lay-off é um mecanismo de apoio às empresas em situação de crise financeira durante a pandemia, que pode ser acessado extraordinariamente pelos empregadores com a finalidade de manter os contratos de trabalho. Basicamente consiste em apoio financeiro parcial da Seguridade Social às remunerações dos trabalhadores sujeitos ao regime temporário de trabalho, ou cujos contratos tenham sido suspensos.

Aos trabalhadores independentes, o Governo anunciou apoio financeiro extraordinário decorrente da redução da atividade econômica, inicialmente por um mês e prorrogação por até seis meses, e a possibilidade de suspensão do pagamento das contribuições à Seguridade Social. Entretanto, os representantes sindicais de parcela do setor cultural reclamam da insuficiência do valor atribuído como apoio social em geral a maior parte dos trabalhadores culturais, isto é, a quantia de 438, 81 €. O valor é menor que a Renda Mínima Mensal Garantida (RMMG), o correspondente a 635 €.

Além das medidas de proteção econômica e social do Governo que indiretamente abarcaram a cultura, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, alinhou medidas adicionais específicas que seriam desenvolvidas durante o Estado de Emergência, de forma a garantir o presente e o futuro dos setores culturais.

De imediato, o Governo expediu o Decreto-Lei nº. 10-I/20, de 26 de março, com medidas excepcionais e temporárias, durante o Estado de Emergência, no âmbito cultural e artístico, voltadas em particular para os espetáculos, a fim de contornar entraves do Código de Contratação Pública, no que se refere principalmente ao pagamento de atividades canceladas, e de assegurar os direitos do público consumidor.

Apesar da imprevisibilidade do fim do isolamento social, a norma adota como regra o reagendamento de eventos culturais não realizados entre 28 de fevereiro de 2020 e até 90 dias úteis após o término do Estado de Emergência, admitido o cancelamento. Para que os agentes culturais não sofressem com os encargos dos prejuízos decorrentes das mudanças dos seus calendários, o Decreto-Lei proibiu que os proprietários dos estabelecimentos onde ocorreriam os espetáculos cobrassem reajustes nos valores do novo agendamento, bem como facultou que decidissem sobre a solicitação de reembolso ou, por acordo, a sua utilização em realização posterior. Assim também, deixou claro que os responsáveis pela venda de bilhetes não poderiam exigir dos agentes culturais a cobrança de comissões em razão dos cancelamentos ou reagendamentos.

O reagendamento foi flexibilizado para que os agentes pudessem alterar, sob certos limites, não apenas a data e o horário, mas o local do evento, facultando ao público já adquirente de ingressos a troca sem custos por novo bilhete, ou por ingressos de outro espetáculo, nessa hipótese com o reajuste do preço. A normativa preocupa-se de todo com o consumidor. Caso haja o cancelamento, os agentes culturais devem devolver aos adquirentes os valores dos bilhetes, dentro do prazo estipulado pelo Decreto-Lei.

As normas também se destinam às ações promovidas por entidades culturais públicas mesmo sob o regime de contratos públicos. O reagendamento implica a possibilidade desses agentes contratarem trabalhos e serviços complementares e aplicarem o sistema de revisão de preços a seus contratos. No caso do cancelamento, devem proceder ao pagamento do preço dos compromissos anteriormente assumidos, caso o bem ou serviço tenha sido efetivamente prestados, ou na respetiva proporção do já realizado.

A grande crítica que se fez é que o momento era oportuno para que se obrigasse as instituições privadas com apoio público a manutenção do pagamento dos valores orçados para as atividades culturais nos tempos previstos que elas iriam ocorrer, e não reduzi-lo somente à parcela ou mesmo empurrá-lo para o futuro, já que está em jogo a subsistência dos agentes culturais.

Todavia, as medidas do Ministério da Cultura (MC) não ficaram por aí. No pacote, a pasta se comprometeu a honrar os compromissos financeiros dos órgãos e equipamentos culturais do Estado português com os agentes culturais, exatamente em virtude do cancelamento e reagendamento das atividades. Além disso, sinalizou seu foco a pensar em apoio a projetos que pudessem ser executados via internet ou posteriormente ao Estado de Emergência. Para centralizar as informações sobre suas medidas e facilitar o acesso a esclarecimentos sobre acesso aos apoios disponibilizados pela pasta, o MC criou o sítio eletrônico “Cultura e Covid-19”.

De acordo com os anúncios do Ministério, a Direção-Geral das Artes (DGARTES) manteve o calendário de pagamentos a apoios financeiros durante o período no qual os projetos incentivados estiverem suspensos. Assim também, o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) não só acelerou as seleções de incentivo a projetos cinematográficos e audiovisuais, como flexibilizou as obrigações referentes à exibição e distribuição dos produtos já apoiados por concursos do instituto público, permitindo a manutenção dos pagamentos da remuneração dos trabalhadores culturais criativos além de quaisquer outros envolvidos na execução de um projeto apoiado. Foi facultado aos agentes culturais incentivados pela entidade da Administração Pública indireta portuguesa substituir a obrigação de explorar inicialmente as obras cinematográficas em salas de cinema pela exibição televisiva ou através de serviços de comunicação audiovisual a pedido.

Em termos orçamentários, o Ministério da Cultura designou o valor extraordinário de um milhão de euros ao Fundo de Fomento Cultural com o intuito de apoiar artistas e entidades culturais de artes performativas e visuais em situação de vulnerabilidade cujas atividades estiverem suspensas total ou parcialmente pelo Estado de Emergência. Os projetos são financiados agora, mas podem ser executados apenas em 2021.

Concomitantemente, algumas instituições culturais privadas, como a Fundação Calouste Gulbenkian, também anunciaram no início do período de exceção, a constituição de fundos de solidariedade. A Gulbenkian criou fundo de emergência de 5 milhões de euros, desse dinheiro um milhão será empregado para apoio a trabalhadores e instituições culturais sem fins lucrativos nas áreas das artes visuais, dança, música e teatro que tiveram seus projetos suspensos ou cancelados pela pandemia.

A Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA), entidade de gestão coletiva de direitos conexos ao direito de autor em Portugal, igualmente empregou um milhão de euros em fundo de emergência para dar suporte financeiro a artistas em dificuldades.

Diante das potenciais ferramentas que a internet tem proporcionado, o MC somou-se à plataforma que procura unir criadores e empresários interessados em financiar atividades culturais. O Ministério da Cultura emprestou o seu sítio eletrônico para o movimento colaborativo “Portugal em Cena” no qual é possível artistas apresentarem projetos culturais que serão executados online, ou presencialmente daqui a um ano, patrocinados por entidades e empresas que disponibilizam seus auxílios através desta plataforma. Em Portugal, há outras formas de compartilhamento de conteúdos culturais, como a do movimento Teia 19.

Apesar do esforço do Ministério, em cooperação ou não com a iniciativa privada, os anúncios de ajuda às artes foram alvos de críticas por parte de setores culturais descontentes com as medidas de apoio. Em causa a situação precária dos trabalhadores da cultura, em particular os anônimos. Não à toa que mais de 200 personalidades portuguesas firmaram Carta Aberta (04 de abril) antes da Páscoa, chamando atenção para “os invisíveis da cultura”, se referindo sobretudo aos trabalhadores independentes que realizam tarefas acessórias e de mediação cultural. Ao tempo que endossam as medidas realistas do Ministério, os subscritores fizeram um apelo no documento para que houvesse apoios imediatos que levassem em conta as questões de sobrevivência dos trabalhadores.

A Carta não tinha só como objeto as medidas emergenciais do Estado português. O abaixo-assinado pede que fundos de solidariedade como os da Gulbenkian sejam reposicionados para contemplarem as perdas de rendimentos dos profissionais da cultura.

Neste momento de escassez orçamentária, ressurgem aqui pautas antigas que também já foram bandeiras do outro lado do oceano como a exigência da vinculação de 1% do orçamento do Estado português para a cultura. De outro modo, aumenta a crítica de setores culturais à instrumentalização dos apoios do Ministério, dado o descompasso da urgência das demandas com os processos burocráticos seletivos em valores considerados abaixo do esperado. Em outra mão, questiona-se: em que medida essa união com a iniciativa privada em uma plataforma não delegaria a ela o direcionamento da escolha dos projetos?

A paralisação dos setores culturais impõe durante a emergência que o Ministério da Cultura aqui pense em alternativas de subsistê-sobrevivê(ncia) das atividades culturais. No início da semana da Páscoa, em reação à fertilidade das lives em redes sociais, foi anunciado pela pasta o financiamento de um milhão de euros para o projeto TV FEST, que consiste no convite a artistas, realizado por uma curadoria, para exibirem na TV pública portuguesa (RTP) e em canais por assinatura, no decorrer de um mês pelo menos, conteúdos inéditos produzidos durante a quarentena. O último dos artistas a se apresentar em um determinado dia convida o seguinte para a exibição posterior e, assim, sucessivamente. Os pagamentos das apresentações incluiriam pela proposta os técnicos em espetáculo.

No entanto, a iniciativa não foi vista com bons olhos pela diversidade dos setores culturais portugueses, que endereçaram à Presidência abaixo-assinado requerendo o cancelamento do festival.

O abaixo-assinado, iniciado em 08 de abril, foi firmado por cerca de 20 mil assinaturas. A iniciativa partiu de artistas e técnicos de espetáculos que apontam que o TV FEST não condiz com a diversidade dos setores culturais português, e prestigia determinados artistas em detrimento de outros, enfatizando que ao Estado caberia apoiar projetos e criações advindas da sociedade, não a tarefa de produzi-los. O questionamento de parte dos trabalhadores da cultura, alicerçados no sustentáculo popular, se sustenta em princípios como a imparcialidade e transparência na escolha das apresentações.

Embora o Ministério afirme que o recurso financeiro não seria destinado à RTP, que já recebe subsídios estatais, a reação da classe artística signatária da petição demonstra insatisfação com a casual alocação na empresa pública portuguesa. A reação negativa suspendeu a realização da proposta pelo MC.

Novamente, o ponto fulcral dessa nova manifestação do campo cultural é o desígnio do emprego do orçamento. No cerne está o questionamento do direcionamento dos recursos para uma única área aparentemente, a música, além de perguntas aparentemente menores, mas que colocam em contradição as orientações sobre isolamento social. Como produzir com equipe técnica se é para todos estarem em casa?

Por outro lado, evidencia-se o tensionamento para que seja melhor definido os critérios de distribuição de recursos limitados, levando em conta as desigualdades e as especificidades regionais existentes em Portugal. Isso não retira por óbvio os elogios que têm sido deferidos à Presidência e ao Governo no enfrentamento da pandemia, pelo povo português ou por líderes internacionais como o Primeiro-Ministro espanhol, Pedro Sánchez (Partido Socialista Operário Espanhol).

Mas, em outro aspecto, revela que, assim como o verso de Zeca Afonso – para ser condizente com os vermelhos Cravos de Abril – apesar de os legitimados constitucionalmente designarem as medidas excepcionais para o momento de exceção, na democracia ainda “o povo é quem mais ordena”. Isso não anula sua capacidade criativa diante da contingência ou da falta de recursos.

Em decorrência do isolamento social imposto pelo surto do COVID-19, a relação de muitos artistas com o público passou a ser intensificada e mediada por aplicações de videoconferência e redes sociais, com transmissão ao vivo de performances, shows, ensaios, leituras etc. . Contudo, não apenas muitas dessas linguagens ressentem-se de condições técnicas e materiais que possam ofertar às pessoas um conteúdo de melhor qualidade, afinal também estão confinadas em casa, como nem sempre estão habituadas a realizar esse tipo de transmissão.

Portanto, faltam-lhes os componentes do aparato, do auxílio e do suporte de parcela dos trabalhadores da cultura cujas funções, bem como vezes a própria existência, são invisíveis ou despercebidas às plateias. Em um ou outro caso, não estamos, na sua maior parte, diante de estrelas ou do mainstream do cinema e da música, mas de um pedido de socorro latente que se apresenta freneticamente com criações ininterruptas e incansáveis, para multidões encarceradas de rostos que se transformaram em números de visualizações, cujo êxito nem sempre corresponde à remuneração justa que garantiria sua sobrevivência em tempos de pandemia.

Se, por uma perspectiva, o enfrentamento da pandemia aguça, através das novas tecnologias da informação e comunicação, os sentimentos de solidariedade e compartilhamento tão afeitos à salvaguarda da diversidade cultural, sob outra, o regime excepcional que se vive agrava a precariedade permanente à qual se sujeitam os trabalhadores da cultura.

A criatividade para lidar com as contingências pandêmicas não pode fazer com que retornemos a nos acostumar com o fazer artístico precário. Como o próprio artista da fome do conto de Kafka percebeu, diante de sua condição inaceitável, ao se esgotar para se desprender do apego a sua prática, a única persistência que deve continuar a existir é a insatisfação revigorante (da pantera alimentada) dos trabalhadores da cultura, diante de quaisquer condições aviltantes sejam lá em quais tempos estivermos.


15/04/2020

 

Dr. Rodrigo Vieira

Investigador Visitante em Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UFERSA/Coordenador do DiGiCULT – Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da UFERSA.

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